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Brasil, a 40 anos do golpe militar

20 Mar 2004 | No dia 31 de março completam-se 40 anos desde o golpe militar responsável pela deposição de João Goulart, que deu início a 21 anos de ditadura militar, uns dos períodos ditatoriais mais extensos da América do Sul. O golpe de Estado de 31 de março de 1964 foi uma ação orquestrada pelo empresariado e pelo imperialismo com o objetivo de conter e reprimir a ascensão da luta dos trabalhadores. Neste artigo não pretendemos desenvolver a história do golpe militar, fartamente conhecida, e sim explicar como este golpe estava centrado em desferir um forte ataque físico aos trabalhadores e ao povo para colocar o país nos moldes do imperialismo americano, e também como estes mesmos trabalhadores resistiram à própria ditadura militar, questão sobre a qual pouco ou nada se fala; assim como demonstrar como todos os responsáveis pelo sangrento golpe militar jamais pagaram pelos seus crimes e, pior ainda, continuam na vida política normalmente, inclusive nas próprias entranhas do poder.   |   comentários

Os responsáveis pelo golpe militar

Em 1964, as atividades da CIA, do Departamento de Estado americano, da embaixada e das multinacionais norte-americanas tiveram participação ativa no processo central para que o empresariado, parte da Igreja Católica, a oficialidade militar e os partidos de oposição, liderados pela União Democrática Nacional (UDN) e pelo Partido Social Democrático (PSD) alcançassem seu objetivo de instaurar uma ditadura militar. Contrariamente a como costuma contar a classe dominante, tese inclusive defendida pelo atual governo Lula, os militares jamais desenvolveram algum tipo de “projeto nacional” , Tratou-se de uma das ditaduras militares mais entreguistas na história do país, concedendo todas as condições favoráveis para que tudo o que as multinacionais produziam no país fosse repatriado sem dificuldades.

O golpe militar corroborava com os interesses do capitalismo internacional no país, para o qual era necessário derrotar política e fisicamente os trabalhadores. Por isso a atuação da embaixada americana, com seu embaixador Lincoln Gordon, foi parte ativa desse processo, chegando inclusive a planejar a chamada “Operação Brother Sam” , caso se desenvolvesse uma resistência maior ao golpe, com um forte deslocamento militar de porta-aviões e tropas norte-americanas às costas brasileiras.

Os golpistas, ao longo de toda sua história, desenvolveram uma violenta repressão, intervenções nas organizações e associações operárias, prisão e assassinatos de trabalhadores, camponeses pobres e setores populares. O alvo era atingir centralmente o movimento operário, que não sofreu somente as dores da repressão física e política e a intervenção de suas organizações, mas também um duro ataque a suas mais básicas condições de vida.

Resistência operária e popular à ditadura militar

Os trabalhadores, sob a repressão dos militares, das perseguições e represálias, não deixaram de continuar suas lutas e uma importante resistência se desenvolveu nas fábricas. Esta resistência alcança um ponto culminante em 1967, dando um salto importante em 1968, com um amplo movimento social de massas. Um segundo momento de resistência, centrado em formas novas de organização no chão da fábrica e em forma clandestina, vai de 1969 até 1977 e prepara um terceiro momento, só que desta vez em uma situação em que os trabalhadores passaram a uma verdadeira ofensiva, através do importante ascenso iniciado em 1978.

Após o golpe militar, a esmagadora maioria dos sindicatos estava sob intervenção do Estado, e os que não estavam cumpriam um papel meramente decorativo. Nesse ambiente, diversos setores de trabalhadores começavam a se organizar a partir desde suas próprias empresas. Entre as lutas de resistência, duas adquirem emblemática importância: as greves de Osasco e Contagem. Era o ano de 1968, os trabalhadores, junto com o movimento estudantil vão convergir em um dos momentos importantes da história da resistência à ditadura militar, como se expressou na famosa passeata dos 100 mil em Rio de Janeiro. Abria-se o período de recrudescimento das ações repressivas com a promulgação do Ato Institucional nº 5 (AI-5) que vai se estender até 1979, atingindo desta vez não só os trabalhadores, como vinha sendo desde o começo do golpe, mas também alguns setores da burguesia. A repressão política é “respaldada” pelo chamado “milagre económico” (1969-1973), um “milagre económico” obtido sob o suor e o sangue da exploração dos trabalhadores alcançada com base na repressão política iniciada já no momento do golpe.

Assim, a onda mais importante de lutas operárias no Brasil vai se estender por toda a década de 70, culminando a partir de 1978 num processo de ascenso operário como não se tinha visto em décadas anteriores. O período de lutas de resistência nas fábricas, que vai cobrir o período 69/77, se desenvolvia em forma clandestina, por meio de boicotes, sabotagens, lutas contra as condições de exploração, contra a repressão nas fábricas e a opressão social, etc. A completa intervenção nos sindicatos, a cooptação da maioria destes, a proibição das greves, e todas as leis restritivas, somados aos ritmos brutais de produção, favoreceram um fenómeno novo, o surgimento da organização dos trabalhadores no próprio chão das fábricas, como foram as comissões de fábrica, que ainda que de maneira desigual foi um processo generalizado.

Ao longo dos anos 70, gesta-se um processo embrionário de resistência dentro das fábricas - no qual os trabalhadores lançavam mão de métodos como a “operação tartaruga” e o boicote da produção - que foram culminar no grande auge grevístico que se inicia em 78. A organização operária em comissões de fábrica clandestinas, de resistência primeiro e de ofensiva a partir de 78, foi o verdadeiro motor do posterior ascenso dos trabalhadores metalúrgicos. Como fala um estudioso desse período, “o movimento operário, em seu cotidiano, em todos esses anos de regime autoritário, foi elaborando sua resistência em pequenos embates... foram estas pequenas lutas no dia-a-dia fabril que, de certo modo, possibilitaram o surgimento do movimento grevístico de 1978” [1]. Assim, se estava gestando nas fábricas um novo poder de classe, que enfrentava o Estado autoritário, suas leis repressivas e a burocracia colaboracionista. Este processo, como já é conhecido, se estendeu pelos principais pólos industriais do Estado de São Paulo, como foi o caso do ABC, e na própria Capital.

Este processo de lutas nas fábricas se expressava não só em reivindicações salariais, mas também, e mais importante, em greves políticas contra a ditadura militar. Frente a esta situação, os novos dirigentes sindicais que surgiram na época, como o próprio Lula e a maioria dos que hoje ocupam cargos no seu governo, atrelaram o movimento a meras lutas reivindicativas, a recuperação de sindicatos pela via eleitoral, transformando-se já na aquela época num grande obstáculo que os trabalhadores precisavam superar em sua luta contra a exploração capitalista, o imperialismo e suas multinacionais, a ditadura militar e seus agentes no interior do movimento operário. A etapa que se desenvolve no período de 78-80 foi marcada por greves políticas massivas contra a escravidão capitalista e, fundamentalmente, contra a ditadura militar. “Tendo como causalidade fundante a precariedade das condições de salário e trabalho, assumiu desde o começo uma nítida dimensão política, ao confrontar a própria base material do próprio poder político. Despiu o processo excludente e autocrático da auto-reforma do regime e mostrou os imensos limites do liberalismo parlamentar oposicionista, incapaz de incorporar as reivindicações oriundas do mundo fabril” [2]. A maioria das correntes políticas da época oculta o caráter anti-ditadura que envolvia este importante ascenso dos trabalhadores. Esses novos “dirigentes” que surgiam eram inimigos de uma política independente dos trabalhadores, e inimigos do surgimento de organismos independentes para a luta política do movimento operário. Por isso, o que procuravam era a recuperação dos sindicatos simplesmente como órgãos rotineiros para a luta reivindicativa, e preparando o terreno para o período que se abriria, o chamado período da “transição” , levando ao desvio desta esta onda de lutas importantíssimas, nos primeiros anos da década dos 80.

A “transição” pós contra-revolucionária

Chamamos de “transições” pós contra-revolucionária as “transições” posteriores a grandes derrotas do movimento de massas. Este tipo de transição se deu no cone sul latino-americano, onde o ascenso revolucionário operário e popular foi derrotado com golpes contra-revolucionários que provocaram dezenas de milhares de mortos, desaparecidos e exilados. Teve como conseqüência, no caso do sangrento golpe de Pinochet, uma derrota histórica do movimento operário chileno que havia assentado importantes marcos de independência de classe, expressos nos cordões industriais. Na Argentina, a ditadura do General Videla liquidou os melhores elementos de uma geração de operários, estudantes e lutadores populares que protagonizaram grandes lutas. O golpe de Estado no Brasil, insere-se entre estes sangrentos golpes contra-revolucionários. Sobre estas derrotas se firmaram as “aberturas democráticas” a que assistimos nos anos 80 no Brasil, onde a ditadura foi perdendo sustentação, produto do importante as-censo do movimento de massas e operário e de uma forte crise económica.

A “transição” brasileira, da mesma forma que as outras “transições” do continente, procurava manter o controle das classes dominantes, garantindo a impunidade das forças repressivas. O temor do ascenso de massas, que teve como ator principal o importante ascenso do movimento operário, acelerou o processo de um grande pacto com o intuito de evitar que as ações do proletariado adquirissem uma dinâmica independente e ameaçasse não só os próprios militares golpistas, mas também o conjunto dos setores dominantes. A isto se prestaram todas as forças políticas da época, tanto como os que participaram do conjunto dos pactos com os militares, como aqueles que frearam o movimento operário, levando sua luta, que adquiria uma dinâmica contra a ditadura militar, a meras reivindicações económicas e utilizando-as como formas de pressão internas ao processo de transição.

Os militares brasileiros deram início a um processo hierarquicamente controlado. Os militares, em pleno acordo com as forças dominantes e com a cumplicidade de todas as forças políticas que se diziam democráticas e até de esquerda, conseguiram impor todas as restrições necessárias, de maneira a sairem impunes do processo e com todos os seus direitos garantidos. Por exemplo, o governo de Sarney, homem da ditadura militar, catalogado como o primeiro governo civil, contava com seis militares golpistas em seu gabinete. Durante esse governo, por exemplo, os militares, decidiam por conta própria enviar ou não tropas para derrotar greves dos trabalhadores, assim como também oisficia militares da ativa continuavam no controle do Serviço Nacional de Inteligência. Na própria Assembléia Constituinte, os militares golpistas tiveram força tal, que a Constituinte terminou legitimando o poder de facto dos que haviam sido os responsáveis por tantos assassinatos de trabalhadores e camponeses pobres.

[1Crise e Poder, Ricardo Antunes.

[2Idem. Negritos nossas.

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