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Cultura

A propósito do Natal

As origens do cristianismo segundo o marxismo

24 Dec 2014 | As origens históricas do cristianismo foram e continuam sendo um tema difícil de abordar. As fontes de informação sobre as primeiras comunidades religiosas são majoritariamente cristãs e estão nas mãos do clero, que realizou um cuidadoso trabalho de seleção, mesclando teologia e história, com a intenção de ajustar os fatos ao modelo da instituição eclesiástica.   |   comentários

As origens históricas do cristianismo foram e continuam sendo um tema difícil de abordar. As fontes de informação sobre as primeiras comunidades religiosas são majoritariamente cristãs e estão nas mãos do clero, que realizou um cuidadoso trabalho de seleção, mesclando teologia e história, com a intenção de ajustar os fatos ao modelo da instituição (...)

Como evidencia a celebração do nascimento de Jesus nestes dias – e que motiva a publicação desta nota – o dogma conseguiu se sobrepor à história, ainda que não sem crises e a aparição de outras interpretações.

No caso do marxismo, o tema das origens do cristianismo foi desenvolvido em alguns trabalhos do fim do século XIX e início do XX. Na década de 1880 e na primeira metade do decênio seguinte, Friederich Engels escreveu uma sequência de artigos: “Bruno Bauer e o cristianismo primitivo” (1882), “O livro do Apocalipse” (1883) e “Sobre as origens do cristianismo” (1894). Naquela época também foi publicado “Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã” (1886) e “Do socialismo utópico ao socialismo científico” (1880/1892), nos quais Engels voltou a se referir à crítica da religião.

O primeiro destes artigos, “Bruno Bauer e o cristianismo primitivo”, foi escrito para o jornal socialista Der Sozialdemocrat após a morte do filósofo alemão. Bruno Bauer foi parte da escola hegeliana e como Ludwig Feuerbach – outro discípulo de Hegel – teve uma importante participação no debate sobre religião que se desenvolveu nos anos anteriores à revolução de 1848 em um contexto de reação absolutista e censura política. Diferente de Feuerbach, que atacou os aspectos ideológicos da religiosidade demonstrando que a religião é um produto da humanidade, Bauer se interessou pelos primeiros escritos religiosos e as origens do cristianismo. Contra a crítica vulgar que considerava o cristianismo uma enganação por parte um grupo de homens inescrupulosos, Bauer chegou ao conhecimento de suas origens históricas, especialmente acerca de sua expressão no Ocidente, demonstrando que os textos evangélicos combinavam concepções do judaísmo e da filosofia greco-romana vulgar, especialmente do estoicismo.

Engels retomou algumas de suas ideias incorporando-as a sua própria interpretação. Em seu enfoque, o cristianismo primitivo foi um movimento religioso dos oprimidos, semelhante nesse aspecto ao movimento moderno da classe operária. Um punhado de latifundiários, usurários e grandes comerciantes haviam convertido o mundo em um lugar opressivo e angustiante para a maioria da população. Diante dessa situação, setores de camponeses arruinados pelas enormes cargas de impostos, escravos foragidos, libertos e livres empobrecidos de territórios não-itálicos, incorporados ao império com obrigações e numerosos impedimentos materiais, encontraram no cristianismo uma saída espiritual, a do “reino dos céus”. Ao mesmo tempo, assinalava que nos primeiros escritos religiosos – entre eles o livro do Apocalipse, a respeito do qual realiza uma interpretação – não havia rastros das concepções dogmáticas estabelecidas pela Igreja, como a ideia da religião universal que acompanhou sua consolidação no século IV. Em seu início havia sido um movimento judaico de pobres e oprimidos. Com a vitória do cristianismo frente a outras seitas esse aspecto ficou relegado, cumprindo um papel central a formação do dogma e a luta contra a heresia.

O tema da origem do cristianismo foi retomado no início do século XX por Karl Kautsky e Rosa Luxemburgo, dois importantes dirigentes da socialdemocracia alemã, que posteriormente se enfrentaram quando o primeiro deu um giro para o reformismo. Em 1908 Kautsky publicou “Origens e fundamentos do cristianismo”, um extenso trabalho, resultado de uma investigação de vários anos sobre a aparição do cristianismo e a figura de Jesus. Nele, analisou a sociedade romana e suas bases econômicas, assim como o Estado, as correntes de ideias a tendência à religião e o monoteísmo. Um aspecto central do livro é sua análise da história do povo hebreu e sua relação conflitiva com a estrutura de autoridade do Império romano. Para Kautsky, o cristianismo foi em seu início um movimento rebelde e violento dos setores mais pobres e oprimidos do povo judeu. Com o tempo, adquiriu aspectos igualitaristas e comunistas sobre a repartição de consumo e de toda a produção.
Três anos antes havia sido publicado um trabalho de Rosa Luxemburgo, “O socialismo e as igrejas”, difundido inicialmente na Polônia para desmascarar o papel reacionário da instituição eclesiástica. Para Luxemburgo, a religião cristã constituía um tema fundamental devido à influência que exercia no povo polaco. No “O socialismo e as igrejas” constratava as raízes igualitárias e rebeldes do cristianismo com as doutrinas reacionárias estabelecidas pela Igreja. O cristianismo primitivo havia difundido a ideia de igualdade, condenando a avareza e o egoísmo dos ricos; a separação entre laicos e sacerdotes avançou contra essas ideias, justificando a opressão e a exploração dos setores que originalmente havia enfrentado. O clero era um dos principais porta-vozes dos exploradores da classe operária.

Ainda que, segundo os estudos históricos, o cristianismo tenha sido atualizado ao longo do século XX, os núcleos fundamentais da obra destes autores marxistas continuam vigentes, e motivaram a produção de novos trabalho. Nestes textos pioneiros não se buscava ressaltar os aspectos positivos do cristianismo primitivo. Diferente dos que sustentam que o cristianismo e a revolução podem andar de mãos dadas, os marxistas demonstraram que os movimentos populares de oposição e resistência com aspectos religiosos e místicos são próprios da época pré-capitalista; a classe operária, pelo contrário, tem a possibilidade de se desfazer dessas formas, lutando pelo paraíso na terra.

O conhecimento das origens do cristianismo é, desse modo, parte da crítica marxista da religião. Demonstra que a religiosidade é um produto social e não pode ser superada por decreto ou através de um processo de conscientização anti-religiosa. Tampouco se trata unicamente de uma batalha da ciência contra a ignorância. Sob o capitalismo, o conhecimento científico – ainda que seja central – é insuficiente. Como assinalaram Marx e Engels, a superação da religião e de todas as suas manifestações particulares ocorrerá quando as condições de reprodução materiais da vida apresentem relações transparentes entre os humanos, e entre estes e a natureza. O capitalismo, pelo contrário, incorporou o fetichismo da mercadoria que oculta as relações de exploração de alienação.

Estes fetiches – religioso e econômico – se combinam no Natal em questão; o nascimento de Jesus – com sua história transformada – e Papai Noel – um personagem da Idade Média que a Coca Cola converteu em um fomentador do consumismo – aparecem como símbolos de celebração religiosa e consumismo, unidos pelo sistema capitalista.

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