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Teoria

Debate

“A revolução contra O Capital?”

09 Nov 2007 | Como parte do evento “Teoria & Prática: 140 anos d’ O Capital – 90 anos da Revolução na Rússia”, organizado pela Escola Nacional Florestan Fernandes, Depto de Jornalismo da PUC-SP, Núcleo de Jornalismo Perseu Abramo, e pelo Núcleo de Estudo de Ideologias e Lutas Sociais (NEILS-PUC), foi realizado no dia 30/10 o debate “A revolução contra O Capital?”. A LER-QI esteve representada por Edison Salles, que compôs a mesa com os professores Marcos del Roio, da Unesp de Marília, Lúcio Flávio da PUC-SP, e Valério Arcary, intelectual do PSTU.   |   comentários

Nossa intervenção

Partindo da expressão do jovem Gramsci que serviu de tema da mesa ’ que na época da revolução russa era ainda um jovem socialista sem base teórica marxista, e interpretou os acontecimentos da Rússia como uma “revolução” contra todas as previsões teóricas do marxismo ’ nossa intervenção buscou ressaltar duas dimensões de tal interpretação.

De um lado, a enorme surpresa manifestada por Gramsci no título de um artigo escrito em 1917 sobre a revolução russa ’ chamada por ele de maneira provocativa de “uma revolução contra O Capital” de Karl Marx ’, não era a exceção, mas sim a regra entre a grande maioria dos socialistas e marxistas europeus. Naqueles tempos, praticamente ninguém imaginava que, num país atrasado como a Rússia, pudesse ocorrer uma revolução em que o proletariado tomasse o poder à frente das massas camponesas, expropriar a burguesia e iniciar a construção do socialismo. Essa concepção esteve restrita basicamente a Trotsky até 1917, e somente a partir de março desse ano passou a ser defendida por Lênin, que teve que se enfrentar duramente com seus próprios camaradas de partido para efetuar a profunda mudança de orientação que tal perspectiva impunha. O espanto de Gramsci era então expressão do caráter “inesperado” do curso que tomou a revolução russa ’ e esse caráter inesperado correspondia de fato à enorme contradição que efetivamente significava o triunfo da revolução num país atrasado ’ um “elo débil da cadeia imperialista” . Como diziam Lênin e Trotsky após o triunfo da revolução de outubro de 1917, para os trabalhadores de um país atrasado era mais fácil chegar ao poder (pois a burguesia num país assim é mais fraca que a dos países avançados), porém mais difícil dar passos em direção ao socialismo (pois o atraso económico constitui um enorme obstáculo para a construção de uma sociedade baseada na abundância e, portanto, na superação da competição pelo básico). Como sabemos, essa contradição de primeira magnitude esteve na raiz da degeneração que a própria revolução sofreu anos mais tarde, ao ficar isolada em um só país.

De outro lado, a interpretação segundo a qual a revolução russa seria uma “revolução contra O Capital” , implica alguns erros importantes: por um lado, sugere a idéia de que a teoria marxista seria incapaz de prever a dinâmica interna dessa revolução; por outro lado, atribui então à “pura vontade” da direção bolchevique a capacidade de desconhecer simplesmente os obstáculos postos pela realidade efetiva e impor seu programa como algo totalmente externo a essa mesma realidade. Uma concepção, portanto, extremamente voluntarista e subjetivista.

Nossa intervenção buscou aprofundar nas conseqüências dos erros contidos nesta interpretação, e mostrar como não era absolutamente casual que dois pensadores marxistas ’ os quais, com suas diferenças, exerceram e exercem ainda uma grande influência sobre a intelectualidade marxista brasileira, ao contrário de Trotsky que ainda é praticamente desconhecido, quando não diretamente negado por ela ’ a saber, Gramsci e Lukács, que tiveram num primeiro momento uma interpretação puramente “voluntarista” do significado da revolução bolchevique; foram também depois incapazes (mesmo depois de terem adquirido um sólido conhecimento teórico do marxismo) de compreender em sua inteireza as contradições colocadas pelo isolamento a que essa revolução chegou após a derrota da revolução na Alemanha e no resto da Europa, mantendo-se ambos em distintos níveis tributários da teoria do “socialismo num só país” .

A teoria da revolução permanente, formulada com este nome por Trotsky apenas depois que a derrota de revolução chinesa de 1925-1927 demonstrou que o stalinismo, com sua linha de “revolução por etapas” e colaboração com a “burguesia nacional” dos países atrasados, estava disposto a negar na prática os ensinamentos mais básicos que o Outubro russo havia deixado ’ esta teoria, dizíamos, era justamente a generalização teórica, enfim alcançada, dos enriquecimentos que a teoria marxista da revolução necessitava após a transição do capitalismo para a época imperialista. Esta transição, consolidada com a I Guerra Mundial de 1914, abria a fase histórica em que a revolução proletária internacional, encontrando no sistema mundial imperialista ’ com sua hierarquia de Estados e a união num todo único e articulado de todos os países, avançados e atrasados, imperialistas, coloniais e semi-coloniais ’ a sua base objetiva mais profunda, colocava-se na ordem do dia. Nesse sentido, a leitura mais interessante que é possível fazer da frase do jovem Gramsci, é também o maior elogio da contribuição específica de Trotsky.

Elementos de polêmica

Evidentemente, a visão que apresentamos sobre os aspectos centrais da Revolução Russa, e sobre as implicações teóricas últimas das lições deixadas por ela, distanciou-se, em maior ou menor grau, das intervenções dos demais debatedores. Por questões de espaço, mencionaremos aqui apenas alguns aspectos de polêmica que se desenharam com as colocações de Valério Arcary, pela influência que este tem sobre setores importantes da vanguarda, a começar da própria militância do PSTU, e porque entre os demais debatedores era apenas ele quem falava também em nome do trotskismo.

Fazendo um apanhado sucinto das inúmeras revoluções (triunfantes e derrotadas) ocorridas ao longo de todo o século vinte, e interpretando-as como parte de cinco grandes “ondas” ou “vagas” da revolução mundial, Arcary extrai das inúmeras revoluções ocorridas ao longo do século passado, a conclusão de que a Revolução Russa foi uma exceção do ponto de vista do papel que nela cumpriram tanto a classe operária, quanto seu partido de vanguarda. Para Arcary, o conjunto das revoluções do século vinte traria a conclusão de que existiria o que ele chama de “substitucionismo histórico” , isto é, assim como a classe operária havia mostrado na Rússia que era capaz de tomar em suas mãos as tarefas progressistas que a burguesia já não era capaz de levar à frente; do mesmo modo, segundo Arcary, as revoluções do século vinte, com a única exceção da revolução russa, demonstrariam que outras classes e outros sujeitos seriam capazes de realizar a revolução socialista: os camponeses, a pequena burguesia, os exércitos guerrilheiros, os partidos stalinistas. Daí Arcary cede a uma das teses em moda no contexto da reação ideológica com que se fechou o século passado: a negação, ou pelo menos no caso de Arcary, a relativização e drástica diminuição, da centralidade operária; nas palavras de Arcary, pareceria indubitável que a classe trabalhadora “perdeu gravitação” . Por outro lado, do ponto de vista de partido, a concepção do partido bolchevique, solidamente ancorado nos setores mais avançados da classe operária e claramente definido como um partido de caráter especificamente proletário. Pela concepção leninista a classe operária obtém hegemonia sobre as demais classes oprimidas da sociedade através de seu programa e toma o poder através de uma aliança de classes forjada no curso do processo revolucionário com a hegemonia do proletariado; esta concepção de partido, de novo a pretexto de considerar a revolução russa como “exceção” , e revoluções como a cubana e a chinesa como nova “norma” , deveria para Arcary ser substituída pela idéia de uma “Frente Única Revolucionária” , na qual o proletariado seria apenas uma força ao lado de outros sujeitos e outras forças sociais, e que deveria ser constituída com antecedência, através de um bloco de classes mais ou menos permanente, prévio não somente à tomada do poder, mas inclusive prévio à abertura de um processo revolucionário.

Como conclusão, apontando para o que deve ser uma resposta muito mais acabada a semelhantes argumentos, é preciso deixar claro que existe uma operação ideológica anti-marxista na argumentação exposta. Pois, ao contrário das conclusões tiradas por Arcary (avançando decididamente em certa trilha aberta por Nahuel Moreno), a centralidade operária que se expressou na revolução russa, com a tendência a construir organismos de auto-determinação das massas como os sovietes russos, longe de ser uma exceção daquele país, voltou a se afirmar em uma longa série de revoluções, na Alemanha em 1918-1919; na Hungria em 1919; no papel da COB na Bolívia em 1952, novamente na Hungria em 1956 ’ desta vez insurgindo-se numa revolução política contra a burocracia stalinista ’ ou, para ficar num exemplo mais próximo de nós, nos cordões industriais chilenos de 1972-1973. No entanto, todos esses processos terminaram derrotados, entre outros fatores pela ausência de fortes partidos leninistas capazes de dirigi-los até a vitória. Por outro lado, aquelas exceções em que foi possível expropriar a burguesia em revoluções de base camponesa e sem sovietes, deram origem a Estados operários deformados, onde o processo de degeneração não se deu depois de anos e fruto do isolamento como na Rússia, mas como características dos próprios processos e da estratégia das direções stalinistas e/ou pequeno-burguesas que se impuseram (caso de Cuba e, particularmente, da China). Nesses casos, as direções não apenas deformaram a própria revolução nacional impedindo a expressão democrática das massas no controle de seu próprio destino, como também interromperam a luta de classes e a extensão internacional da revolução, debilitando deste modo a luta contra o imperialismo à escala mundial.

Daí que a conclusão a tirar é a inversa daquela de Valério Arcary: tomar a construção dos sovietes como organismos de democracia direta das massas, ferramenta da tomada do poder e da planificação democrática da economia após a vitória, e a construção do partido operário leninista, como parte da direção consciente do proletariado a nível internacional, como os dois pólos de uma única estratégia capaz de levar novamente o proletariado ao poder como caudilho das grandes massas exploradas e oprimidas, e de superar os becos sem saída em que ficaram presas as revoluções do século vinte.

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