Terça 23 de Abril de 2024

Cultura

A porta dos fundos das ideias dominantes

11 Feb 2015   |   comentários

Há dois anos e meio, em 6 de agosto de 2012, era lançado no YouTube o primeiro programa do “Porta dos Fundos”. Em quinze minutos, os humoristas reuniram quadros curtos que tratavam de temas como prostituição, uso de drogas, câncer, religião, violência policial, corrupção policial, machismo.

Há dois anos e meio, em 6 de agosto de 2012, era lançado no YouTube o primeiro programa do “Porta dos Fundos”. Em quinze minutos, os humoristas reuniram quadros curtos que tratavam de temas como prostituição, uso de drogas, câncer, religião, violência policial, corrupção policial, machismo. Sem nenhum pudor, o programa abordava temas considerados verdadeiros tabus, com uma postura questionadora. Havia uma diferença fundamental entre o “Porta dos Fundos” e o humor que estamos acostumados a ver.

Como grandes referências do “humor nacional”, podemos pensar em programas como “Zorra Total”, no ar em horário nobre na maior emissora de televisão nacional há mais de uma década, “Pânico na TV”, “Casseta e Planeta” ou o “CQC”, que introduziu figuras como Danilo Gentili. O que há em comum entre todos esses programas? Seu humor é fundado em preconceitos e estereótipos que ridicularizam os setores mais explorados e oprimidos de nossa sociedade. A mulher, seja na figura da “gostosa” ou da “feia”, é sempre vítima do machismo de tal maneira que apresenta ao seu público como algo digno do riso; o mesmo se dá com o racismo, com a homofobia, que no caso de algo como “Zorra Total” sequer é disfarçada ou mediada de forma alguma. Segue a velha fórmula do humor pastelão de nomes como Chico Anísio, de “Escolinha do professor Raimundo”, Carlos Alberto de Nóbrega, de “A Praça é Nossa” ou Renato Aragão, dos “Trapalhões”. Nessa tradição, a regra é rir do que é “diferente”, torna-lo ridículo, inclusive quando se dirige a crianças, que desde cedo aprendem a reproduzir de forma totalmente natural o preconceito. E, pior ainda, a justificá-lo sob a suposta inocência do humor. A qualquer protesto contra esse teor reacionário, a resposta está na ponta da língua: “Ah, mas é só uma piada”.

A nova geração de humoristas da tradição do “humor da opressão” elevou essa agressão e sua justificativa a um patamar inédito. De um racismo, um machismo e uma opressão escancaradas e brutal, cretinos como Danilo Gentili procuram fazer de si mesmos supostos “heróis” da liberdade de expressão. Querem dar um ar de seriedade à sua defesa da manutenção da agressão aos que todos os dias são agredidos como uma atitude supostamente rebelde, subversiva, constestadora. Nada há de contestador nas piadas reacionárias de Gentilli com doadoras de leite materno ou negros a quem oferece bananas. Independente de toda a aura de “livre pensador” que gente como Danilo Gentilli quer atribuir a si próprio, a verdade continua sendo que um idiota é só um idiota. E ele é um perfeito exemplar.

Contudo, o cretinismo cada vez mais escancarado desse humor está colocando uma questão fundamental em evidência: nunca é “só uma piada”. O humor, como outras formas de expressão cultural, é um veículo de valores morais, de modos de pensar e expressar o mundo. Como a arte, ele não é algo fixo e imutável, ele é algo estreitamente relacionado a uma determinada cultura, uma época, uma sociedade, um modo de entender o mundo. Por isso, uma piada que pode ser vista como muito engraçada em determinados meios, pode ser estéril ou completamente ofensiva em outros. Assim, é bastante óbvio o motivo para a Globo escolher veicular lixos como “Zorra Total”: é um humor das ideias dominantes, ou seja, as ideias que sustentam o mundo tal como ele está, onde um punhado de burgueses vive da exploração do trabalho dos trabalhadores. Esses, cansados da semana dura, sentam em frente ao televisor e riem do outro: do preto, do viado, da mulher. E “só uma piada” se transforma em um instrumento de dominação, porque segunda-feira no trabalho é com esses que ele vai fazer piada. É sua voz que ele vai calar, é sobre eles que irá “aliviar” o ódio e o esgotamento físico e mental cansado pela exaustiva rotina. E, cada vez mais divididos, os trabalhadores podem ser melhor explorados. A travesti, estigmatizada pela piada da televisão, vai poder ser contratada por um salário absurdamente baixo para ocupar os postos do telemarketing. E nisso vemos a profundida da opressão de “só uma piada”.

O poder do riso está em um lugar semelhante ao que ocupa a arte: ele vem principalmente do fato de que, ao lidar com ideias, ele não procura convencer racionalmente; antes, mobiliza o que ri pela adesão sentimental, pela emoção. Por isso, muitas vezes pode convencer de formas mais sutis, indiretas, e ocasionalmente mais profundas do que poderia ser feito de uma forma “racional”. E aquele que causa o riso tem uma escolha, ainda que a faça muitas vezes sem perceber: estar do lado dos oprimidos ou dos opressores.

O “Porta dos Fundos” fez sua escolha: ele está do lado dos oprimidos. Por isso, suas piadas ridicularizam as igrejas, a polícia, os políticos burgueses, os homofóbicos, os racistas, a heterossexualidade compulsória, a moralidade burguesa, os padrões estéticos dominantes, a hipocrisia que nos ensinam a cada dia todas as instituições sociais dominantes. E, o mais impressionante é que não apenas o fazem de forma brilhante, ou seja, conseguem fazer o espectador rir e, por essa via, deixar uma “pulga atrás da orelha” de seus velhos preconceitos tão arraigados, mas sim que atingiram um sucesso estrondoso, chegando em apenas dois anos e meio a mais de nove milhões de inscritos em seu canal no YouTube.

Agarram uma “brecha” das novas formas da indústria cultural, que é a possibilidade de criar uma produção independente na internet e não submeter sua produção à aprovação dos donos das emissoras (e nem mesmo aos donos do YouTube, em certa medida). Com isso eles puderam derrubar uma ideia muito forte do senso comum: o humor só tem graça quando é opressor. O “Porta dos Fundos” é, sim, ofensivo: a diferença é que ele é ofensivo aos Silas Malafaia, aos pastores que reproduzem a opressão em sua pregação; aos policiais, que matam todos os dias na periferia. Estes, que até ontem inspiravam apenas medo, hoje são ridicularizados nacionalmente em apenas três minutos. O poder disso não é ignorado pelos próprios policiais, que já ameaçaram os integrantes do “Porta dos Fundos” após a divulgação do quadro “Dura”.

Criticam a polícia também em quadros como “Negro”, “Suborno”, “Bala de borracha”; quanto às Igrejas e seus dogmas opressores, sua cruzada contra a liberdade sexual e o direito ao aborto, criticam-nas em quadros como “Cura”, “10 mandamentos”, “Deus”, “Confessionário”, “Demônio”, “Setor de RH – Jesus”; chocar os homofóbicos e ridicularizar suas atitudes, ou simplesmente colocar a homossexualidade e a transsexualidade como um tema, de forma não discriminatória, também é uma tônica recorrente, em quadros como “Viado”, “Armário”, “Debate”, “A regra é clara”, “Casal Normal”; os políticos burgueses são massacrados de forma sensacional em “Programa político”, “Deputado”, “Ministério”, “Superávit”, “Zona eleitoral”, “Financiamento”; a moral sexual hipócrita e conservadora, o machismo e os padrões estéticos impostos às mulheres também são vítimas de suas piadas em “Princesa”, “Ménage”, “Sobre a mesa” e “Dietas”. Lançando novos quadros três vezes por semana, a resposta deles aos acontecimentos é imediata e certeira. Não poupam, inclusive, os “grandes humoristas” da Globo, como Regina Casé e sua transformação da pobreza em um espetáculo a ser consumido, que é criticado em “Pobre”.

Ocasionalmente o “Porta dos Fundos”, ainda que seja raro, reproduz preconceitos de nossa sociedade, pois, afinal, ainda é um programa feito por gente que nasceu e cresceu nesse mundo e não está isento de reproduzir os valores dominantes às vezes. Isso ocorre, por exemplo, em “Na lata”, em que transparece o preconceito de classe ao se ridicularizar os “nomes de pobres”. Contudo, são casos raros.

A contradição do capitalismo é que ele quer lucro acima de todas as coisas, e, como repete à exaustão – e às vezes até acreditam – uma piada é só uma piada. Por isso, a incrível popularidade do “Porta dos Fundos” levou a reacionária emissora Fox a contratá-los. Uma manobra arriscada para o grupo, mas que até o momento não implicou em nenhuma concessão por parte deles. A experiência mostra que grupos críticos e independentes como o “Porta dos Fundos” têm grande dificuldade em manter sua postura de enfrentamento, negando todas as formas de cooptação. Mas é um ótimo sinal que membros seus como Gregório Duvivier esteja cada vez mais assumindo publicamente suas posições políticas, vindo a público defender o papel político dos humoristas e a liberdade dos 23 presos políticos pelas manifestações no Rio. Esperamos ainda que o “Porta dos Fundos” possa, com sua brilhante capacidade de fazer rir dos que pisam em nós, fortalecer um humor inteligente, crítico e independente cada vez mais.

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