Sexta 19 de Abril de 2024

Internacional

A guerra no Iraque: primeiro balanço

11 May 2003 | Três semanas bastaram para que as potências imperialistas anglo-norte-americanas conseguissem a queda de Bagdá e, junto com ela, o desmoronamento do velho regime ira-quiano, depois de um intenso fogo de guerra nunca antes realizado contra um país do tamanho de Minas Gerais. A ocupação do Iraque pelas tropas imperialistas surpreendeu o mundo inteiro, inclusive o comando militar dos EUA, tanto por sua velocidade, como pela quase nula resistência que encontraram (ver Box). Mas se o desenlace militar da guerra foi rápido, as contradições abertas no cenário do pós-guerra não o serão. A necessidade de impor um regime interno que conte com certa legitimidade não será de fácil solução. A isto se somam as contradições entre as diversas potências imperialistas sobre como se deve estabelecer o controle do conjunto do país ocupado, questão que envolve fortes interesses econômicos, assim como sobre a política em toda a região, como já se havia manifestado antes da guerra.   |   comentários

Contradições no front interno

Desde que a coalizão anglo-norte-americana assumiu o controle do Iraque, ela se viu imersa em um mar de contradições que se expressou, no começo, com os constantes saques e um descontrole das cidades, mas principalmente pelas contínuas mobilizações que vêm se desenvolvendo, muitas delas pela retirada das tropas norte-americanas impulsionada pelos muçulmanos xiitas. Há quase um mês da ocupação, as tropas ocupantes não conseguiram impor nem sequer um governo interino, missão para a qual foi designado o general de reserva americano Jay Garner. Mas assim que entraram, a primeira medida das tropas invasoras foi restabelecer imediatamente a odiada polícia do velho regime, enquanto se mostrava incapaz de preencher o “vazio” de poder após a queda do regime de Saddam Hussein. É que a tarefa de impor um governo que conte com certa legitimidade não é uma tarefa menor, se tomamos em conta que o Iraque é um território onde convivem diversos grupos como os curdos no norte, os xiitas no sul e em importantes áreas de Bagdá, e a minoria sunita ’ a esta última pertencia a classe governante, incluindo o próprio Hussein. A isto se somam as diferenças entre o Departamento de Estado e o Pentágano no governo Bush. Um setor crê que não convém instaurar um governo abertamente títere como pretende Rumsfeld com Amed Chalabi (que há 45 anos está fora do Iraque!), já que pode desacreditar “o importante êxito de Bush” .

É que após a queda do regime de Saddam, internamente também desatou uma luta por espaços de poder, não só entre estes diversos grupos, mas também no interior dos mesmos, como mostra a ocupação inicial de Mosul e Kirkuk pelos permeshgas curdos ou os assassinatos de figuras xiitas pró-ocidentais no sul. A tentativa ianque de montar um governo central é uma primeira fase, uma administração norte-americana direta e, mais adiante, um governo de transição títere, pode ser alterada pelas contradições abertas após a queda de Hussein. É muito provável que as bases do novo poder no Iraque sejam determinadas mais pelos assassinatos, pelas lutas de rua, pelas mobilizações constantes e pelas táticas guerrilheiras, do que pelas reuniões diplomáticas ou de salão que impulsiona a chamada oposição iraquiana. Mas as constantes mobilizações em Bagdá como também as que ocorrem em cidades como Karbala, Titkirt e Mosul, são mostras do receio da população. O mais expressivo foi o que se observou em Mosul, onde uma manifestação contra a imposição de um governante na cidade terminou sendo violentamente reprimida pelos marines, com um saldo de dez mortos e dezenas de feridos. A isto se somam os constantes enfren-tamentos entre curdos e árabes no norte do Iraque, com um saldo de vários mortos.

É por isso que o êxito a longo prazo da ocupação norte-americana dependerá de se este consegue naturalizar-se frente às massas, questão que até hoje, apesar do ódio a Saddam Hussein, salvo minúsculas expressões, não conseguiu. Muito pelo contrário, as constantes manifestações não minoritárias, de setores importantes da população xiita (60% do total), com bandeiras que agitam declarações como “se as tropas estrangeiras não se retirarem assim que acabarem de desmantelar o regime, haverá um novo decreto pedindo aos xiitas que os expulsem, o que, na prática, significará a proclamação da jihad (guerra santa) contra os soldados americanos” . Devemos distinguir entre as amplas massas muçulmanas de seus líderes religiosos que, na verdade, estão disputando justamente uma participação maior no futuro governo que eles chamam de “governo nacional de transição” . É por isso que uma ocupação prolongada pode multiplicar estes exemplos e desenvolver uma resistência de massas que se torne incontrolável, inclusive para os líderes religiosos. Pois uma das questões fundamentais é o repúdio das massas do mundo à guerra, claramente percebida como imperialista ’ limite determinante do poderio norte-americano.

Coerção militar, pactos e acordos

A doutrina militar Ianque de “guerra preventiva” teve um começo bem sucedido, o qual gerou um excesso de confiança no militarismo dos falcões norte-americanos. Mas a experiência histórica mostra que não é suficiente o uso da força militar para manter a supremacia mundial de uma potência, se não está combinada com pactos e acordos para obter certo consenso com outras potências, pela via diplomática e, por seu intermédio, com o movimento de massas. Por isso, desde que se iniciou o curso guerreirista dos EUA, sustentamos que este reflete uma debilidade potencial de longo prazo, expressão de sua declinação histórica. Sua derrota diplomática ao início do conflito, quando não pode lograr o aval da ONU, foi uma prova disto. Avançando na consolidação na região do Oriente Médio após seu recente triunfo no Iraque, estabelecendo seu completo domínio em toda a região, pode significar um giro profundo nas formas de domínio da periferia por parte dos Estados Unidos.

Mas estas grandes diferenças se expressam inclusive no seio do governo Bush. Assim, frente aos apetites despertados dos falcões norte-americanos após o triunfo fácil, alguns deles, como Robert Kagan, recomendam a Bush “resistir às tentações de ser superpotência” . É o mesmo Kagan que havía declarado ao jornal Washington Post, frente às diferenças com a França: “Quando as negociações e as inspeções acabam e os combates começam, a superpotência global estado-unidense volta a ser uma superpotência global, e a França volta a ser a França” . É um claro objetivo guerreirista. Agora recomenda que os “EUA não deveriam tratar de dividir a Europa, deixemos que a França o faça (...) quanto mais os EUA castigam o governo alemão, mais empurramos a ansiosa e isolada Alemanha para os braços abertos de França” . E conclui: “A habilidade da América de dirigir efetivamente no futuro dependerá em grande medida de como esta guerra seja compreendida e recordada no mundo. Esta batalha está só começando, e se a administração pode ser tão inteligente na diplomacia como é na guerra, pode ganhar esta também” (Washington Post, 09/04/03).

Se seguir estes conselhos, não pode descartar-se que EUA tente o difícil equilíbrio de manter a ofensiva guerreirista combinada com pactos reacionários no Oriente Médio e no mundo, baseados na ameaça de instalação das tropas: a coerção. Por exemplo, enquanto começaram suas agressivas acusações contra Síria que pré-anunciam futuras ações militares, começou a delinear-se um pacto para a questão palestina sobre a base da promessa de uma ficção de Estado para 2005, mediante a coerção já que, aproveitando a relação de forças imposta com o recente triunfo, o imperialismo exige que a direção palestina desloque Arafat e discipline os setores radicalizados como o Hamas. Para o imperialismo norte-americano, depois de eliminar o regime iraquiano, mobilizar quase 300 mil soldados a algumas centenas de quilómetros de Israel, e conseguir impor aos palestinos um novo “governo” do primeiro ministro Abu Mazen. Bush está numa posição ofensiva para impor seu reacionário “acordo de paz” no Oriente Médio, ao mesmo tempo que tenta subjugar os países da região como o Irã e a Síria, combinando a coerção militar com acordos de caráter diplomático na procura de um consenso maior na região.

Como afirmam alguns analistas: “antes de obrigar os israelenses a se sentar à mesa de negociação, os EUA obrigam os árabes a baixar a guarda. Dos palestinos, exigiram que Arafat se afastasse de várias funções executivas, cedendo poder para Mazen que ocupará o recém-criado cargo de primeiro-ministro da Autoridade Palestina. Da Síria, os EUA querem a suspensão de seu apoio a grupos como o Hamas e a Jihad Islâmica... Do resto dos países árabes, que ajudem a pressionar a Síria e os palestinos.” Sendo assim, os pactos reacionários entre Israel e as autoridades palestinas só têm “algum futuro” sob as condições que os EUA pretendem criar no Oriente Médio a partir da derrubada de Saddam Hussein.

Mas isto, no marco de uma crise económica mundial, não fará mais que aumentar as contradições que se expressam cada vez mais em grandes rusgas interim-perialistas com uma politização crescente das relações interestatais. Observemos que depois de sua demonstração de força no Iraque, os imperialistas da França, ainda que cautelosos, não se retrataram de suas posições fundamentais. A reunião de cúpula de São Petersburgo onde os líderes da Alemanha, França e Rússia, exigem ser parte da futura administração do país, é outra mostra, o que nas últimas semanas se acentuou. Assim, desde Washington se escutam vozes contra as pretensões francesas no pós-guerra iraquiano como as que se transmitem no jornal imperialista New York Times: “O plano de Jacques Chirac para conseguir gordos contratos para companhias francesas no processo de reconstrução do Iraque bateu de frente com a Realpolitik: ações antiamericanas têm conseqüências... Chirac e o seu novo aliado, Vladimir Putin, deixaram claro que se recusariam a suspender as sanções da ONU à venda de petróleo iraquiano.

O ultimato dado pela dupla Chirac-Putin na semana passada: se não obtivermos contratos franco-russos para a reconstrução do Iraque, não deixaremos que o Iraque venda seu petróleo. Vocês sofrem as baixas; nós ficamos com os contratos.” Por isso, os diversos setores de política externa da administração Bush, divididos sobre como lidar com o futuro do Iraque, começaram a se juntar atrás de uma proposta abrangente, que endossaria a autoridade das forças lideradas pelos americanos para controlar o Iraque e retirar os rendimentos do petróleo iraquiano do controle único das Nações Unidas. Com a iniciativa, os EUA pretendem esvaziar uma proposta francesa de que as sanções sejam suspensas temporariamente, mas não desativadas completamente. Se a extensão do conflito se aprofunda, o que estaria por ver-se após o resultado da recente guerra, seria a reação centralmente dos países como França e Rússia, fortemente prejudicados economicamente na região, o que nos levaria a “conhecer” abertamente os ”˜segredos”™ da verdadeira política dos países que dizem “opor-se” à guerra como França, Alemanha, Rússia e China.

Incerteza no cenário internacional a curto e longo prazo

Mas é certo que as contradições estratégicas não estão resolvidas. A nova repartição do mundo que os EUA buscam, em seu benefício, no meio de uma crise económica de magnitude cada vez mais difícil de conter, não se soluciona com este triunfo militar. O objetivo estratégico que é o de reafirmar a hegemonia imperialista dos EUA não está assegurado, além de uma política aventureirista de uma burguesia imperialista em declive, de uma potência imperialista débil estrategicamente, não esconde a consciência dessa debilidade estratégica. Desde um ângulo estratégico assistimos a um período de decadência da hegemonia política norte-americana. Os golpes contra-revolucionários como no Afeganistão, e recentemente no Iraque, são uma tentativa de subverter esta tendência, aproveitando-se para isso da sua grande superioridade no campo militar em uma tentativa de redesenhar o mundo.

Sendo assim, a prioridade dos EUA é hoje estabilizar o Iraque, mas a médio prazo seu curso está indefinido. Em meio ao aprofundamento da crise económica mundial, começando pelos próprios EUA, o imperialismo norte-americano se debate entre o caminho que mostram as agressões à Síria ou o de tentar fechar parcialmente as brechas com as outras potências. Quanto mais ambiciosos são seus objetivos imperiais, mais aumenta a probabilidade não só de dilapidar suas vitórias militares, mas também de gerar uma maior desesta-bilização e divisões imperialistas e, portanto, abrir oportunidades revolucionárias.

Para as massas árabes e dos países semicoloniais, assim como para o movimento antiguerra que se expressou em todo o mundo e em especial nos centros imperialistas, a vitória dos EUA é um duro revés. As mobilizações antiguerra, sem dúvida, decaíram, mas o ressentimento nos países árabes e o ódio antiimperialista que se estendeu no mundo decantaram uma vanguarda cada vez mais radicalizada. É necessário tirar as lições para pór de pé um verdadeiro internacionalismo proletário que, partindo de exigir a retirada das tropas norte-americanas do Iraque e Oriente Médio, se prepare para derrotar as próximas incursões que promete o governo dos EUA.

As razões da rápida queda do Iraque

Duas são as razões que explicam mais diretamente a queda de Bagdá tão rapidamente. Sem dúvida, a primeira razão da queda rápida do Iraque foi a enorme superioridade militar da coalizão imperialista sobre o obsoleto exército iraquiano comparado com as armas de última geração norte-americanas. Mas apesar desta enorme desigualdade, se podia esperar que, se as tropas da coalizão se vissem obrigadas a travar uma guerra urbana em Bagdá – onde sua vantagem tecnológica se reduziria – teria numerosas baixas e, no contexto internacional contrário à invasão, Hussein buscaria alcançar uma trégua que permitiria a seu regime sobreviver. Mas contra estas expectativas do regime, Bagdá caiu quase sem resistência.

Isto leva a supor a existência de uma negociação entre as tropas norte-americanas e a elite das forças armadas do Iraque. O que pode haver provocado o colapso é a capitulação dos principais comandantes da Guarda Republicana, da Guarda Republicana Especial e dos chefes dos serviços secretos. Ainda que não se pode descartar que a rápida queda do regime tenha se dado pela superioridade do exército inimigo, há elementos claros que permitem conjecturar sobre uma rendição de Bagdá sem luta, acordada em troca de dinheiro e garantias para os principais personagens das forças armadas. O passo seguro das tropas imperialistas por Karbala, o primeiro cordão de defesa de Bagdá, a tomada praticamente sem resistência do aeroporto, o incrível fato de que não se tenha explodido as pontes de acesso à capital, são sinais claros neste sentido. O contraste entre as primeiras semanas, quando a resistência se sentiu e conseguiu golpes táticos contra as forças da coalizão – fundamentalmente através de táticas guerrilheiras implementadas pelas milicias locais e pelos fedayines –, e a repentina queda de Bagdá, faz pensar em uma retirada direta.

Mas a segunda questão e mais de fundo da queda, responde ao caráter corrupto e burguês do exército de Saddam Hussein [Ver matéria nesta mesma página], que mantinha o controle a custo de constantes expurgos e terror sobre a tropa e seu sistema de mando. O desmembramento da Guarda Republicana – ou inclusive a possibilidade, como apontam alguns informes de inteligência, de que Hussein, seus filhos e seus colaboradores mais íntimos foram assasinados produto de uma entrega –, mostra que a alta cúpula do regime pode haver recebido uma dose de seu próprio veneno frente à pressão e o suborno do exército norte-americano, que se lançou a isto desde o início. Se mostrou como estava carcomido o regime do partido Baath. Seu controle autoritário do país e incapaz de unificar à nação frente ao inimigo imperialista como conseqüência da opressão nacional dos curdos e da exclusão social dos xiitas, o regime só estava apoiado em seu exército, o que terminou sendo seu tiro de misericórdia. Estas razões políticas e sociais, são os fatores decisivos que permitiram um rápido, e relativamente fácil, triunfo militar imperialista.

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