Quarta 24 de Abril de 2024

Internacional

Iraque

A farsa da "transferência da soberania"

05 Jul 2004   |   comentários

Em 28 de junho, dois dias antes do previsto, e numa “cerimónia” clandestina realizada entre os muros da chamada “zona verde” , sede da Autoridade da Coalizão encabeçada pelo pró-cónsul norte-americano Paul Bremer, sem permitir nem câmeras de TV que transmitissem ao vivo, celulares e sem a menor fanfarra, realizou-se a chamada “transferência de soberania” do novo governo títere iraquiano. Esta mudança de data revela o temor dos Estados Unidos de que a “transferência” se transformasse num alvo de ataques por parte da resistência iraquiana, após uma semana em que as ações contra as tropas de ocupação e seus colaboradores locais estavam aumentando. Nos dias prévios, os ataques da resistência deixaram mais de 100 mortos e centenas de feridos em todo o país.

Uma prova da farsa da suposta “transferência do poder” é que Bush a anunciou no encontro de cúpula da OTAN antes inclusive de que o povo iraquiano soubesse que tinha assumido o novo governo de Allawi.

As potências imperialistas que haviam se oposto à guerra, como a França e Alemanha, e que já haviam dado suas bênçãos a esta nova fachada da ocupação norteamericana nas Nações Unidas, aceitaram que a OTAN treine o futuro exército iraquiano. Ainda que isto não modifique a situação no terreno, já que se negaram a enviar tropas próprias e a que sequer o treinamento dos soldados iraquianos se faça no território do Iraque.

Mas, apesar deste caráter essencialmente simbólico, para Bush é importante mostrar uma frente mais unida das potências imperialistas que lhe permita retomar a ofensiva na campanha eleitoral para sua reeleição, seriamente questionada.

UM GOVERNO TÃ TERE ’ Com a transferência de “soberania” , os Estados Unidos trocou a administração colonial direta por um governo títere com quem Bush, com o apoio da ONU, pretende fazer acreditar que “terminou a ocupação” e que agora são os iraquianos os que governam o país. Mas o engano é evidente para milhões de iraquianos, já que este suposto “governo soberano” se apóia na presença de mais de 140.000 soldados da coalizão que permaneceram no Iraque como exército de ocupação.

Ayad Allawi, o primeiro-ministro nomeado diretamente pelos EUA, foi colaborador da CIA e da inteligência britânica desde os anos 70, quando rompeu com o regime de Hussein.

O novo governo, desde seu nascimento, está controlado e é determinado por interesses norte-americanos. Para cada ministério foi indicado um “tutelado” norte-americano que “ajudará” o governo nas decisões fundamentais. Como informa o Washington Post, em 27 de junho, Paul Bremer “nomeou pelo menos vinte funcionários governamentais iraquianos com contratos de vários anos, numa tentativa de promover seus conceitos de governo muito depois da transferência da autoridade política” . E continua colocando que um decreto emitido pela Autoridade da Coalizão obriga a que o assessor de segurança nacional e o chefe de inteligência eleito por Allawi tenham um mandato de cinco anos, condicionando assim o próximo governo que em tese deveria surgir no final do próximo ano, com “eleições livres” , garantindo a continuidade do aparato repressivo do estado.

Outra prova de que este governo é uma fachada da ocupação é que inclusive continuam vigentes as disposições ditadas por Bremer, com as quais se estabelecem desde a nova lei eleitoral que regerá a eleição da assembléia nacional em janeiro de 2005, até a proscrição de organizações políticas que estivessem ligadas a milícias armadas, o que permite aos EUA decidir quem pode participar ou não do processo eleitoral. Inclusive, Bremer deixa como herança uma forte restrição à liberdade de imprensa, já que “proíbe a imprensa iraquiana de transmitir ou publicar material que possa danificar a segurança e a ordem pública” .

Uma última prova desta farsa é que o governo iraquiano dependerá totalmente dos EUA para seu financiamento, já que foi criado um comitê especial de controle de fundos para a “reconstrução” e para a “ajuda humanitária” . Ao mesmo tempo, o governo de Bush garantiu para si substanciosos contratos, financiados com a renda petroleira iraquiana, para as corporações multinacionais, como a Halliburton, ligadas ao vicepresidente Dick Cheney.

UMA TENTATIVA DE DERROTAR A RESISTÊNCIA ’ O objetivo da instauração do novo governo é tentar diminuir a exposição das tropas imperialistas e fazer com que as tarefas sujas para combater a resistência fiquem nas mãos dos próprios iraquianos, ou em caso de intervir brutalmente, como durante o mês de abril em Falluja, isso se dê sob a “legitimidade” das autoridades locais. Em outras palavras, procura colocar uma “cara iraquiana” às operações de contra-insurgência. Ao mesmo tempo, Allawi, pelas relações que mantém com o partido Baath, espera chegar a acordos com os remanescentes do regime de Hussein e reconstruir as forças de segurança.

Esta idéia foi assinalada pelo próprio primeiro-ministro num artigo de opinião publicado no Washington Post, no dia 27 de junho, quando anunciou que a intenção de seu governo era “montar forças de contraterrorismo e inteligência” , e acrescentou que “se deveria restaurar a honra dos exoficiais iraquianos decentes, incluindo a polícia e o exército” .

Para dar continuidade a esta “tarefa suja” de combater a resistência, o governo iraquiano será assessorado e supervisionado pelo novo embaixador norte-americano, John Negroponte, quem comandará a maior embaixada dos EUA em todo o mundo, com aproximadamente 4.000 funcionários. Este sinistro indivíduo, até pouco tempo embaixador nas Nações Unidas, teve um papel chave nos anos 80, quando foi designado pelo expresidente Ronald Reagan para esmagar a revolução na América Central. Em 1981, Negroponte estabeleceu em Honduras uma base militar e de inteligência, na qual os EUA treinavam os “contras” nicaragüenses e os esquadrões da morte de El Salvador. Pela “escola” de Honduras também passaram os repressores da ditadura argentina que ajudavam no treinamento da contra-insurgência.

Com semelhante assessoramento e a presença das tropas imperialistas, o governo de Allawi tentará esmagar a resistência. Para isso, conta a seu favor com os setores médios de Bagdá, que aterrorizados pela onda de ataques e seqüestros, pareceriam brindar-lhe inicialmente com seu apoio para essa política repressiva. Também conta com um maior respaldo internacional. Porém, sua fortaleza contra-revolucionária está por ser vista. A patética entrega antecipada da “soberania” , eufemismo com que os EUA apresentam o seu novo títere, não fala bem de seu futuro. Se nos próximos meses a resistência se radicaliza e continua a falta de segurança e as baixas entre os soldados norte-americanos no Iraque, a operação de Bush pode se voltar contra ele mesmo, antes das eleições, selando o destino não só do governo iraquiano, mas também de suas tentativas de se eleger novamente.

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