Quinta 28 de Março de 2024

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A esquerda que não teme dizer Revolução: uma polêmica com o novo livro de Vladimir Safatle

19 Dec 2012   |   comentários

"O explorador não pode ser igual ao explorado. Esta verdade, por mais desagradável que seja para Kautsky é o conteúdo mais essencial do socialismo. Outra verdade: não pode haver igualdade real, de fato, enquanto não estiver totalmente suprimida toda a possibilidade de exploração de uma classe por outra." (Lênin – A revolução proletária e o renegado Kautsky)

"É digno da imaginação de Lassale que se pode construir com a ajuda do Estado uma nova sociedade assim como se constrói uma estrada de ferro." (Marx – Crítica ao programa de Gotha)


No momento em que o PT estende a mão a Maluf para ganhar a prefeitura de São Paulo e em que os “partidos socialistas” na Europa implementam os planos de ataque a classe trabalhadora em meio a crise capitalista, abre-se todo um espectro de crítica a adaptação política da “esquerda”.

Crítica que ecoa profundamente dentro da juventude que desperta para vida política e para uma parcela de trabalhadores que já começam a se chocar na prática com estas direções em toda a Europa. Direções que se tornam a cada dia que passa, os principais obstáculos para suas lutas.

Vladimir Safatle, professor da USP e colunista da Folha de São Paulo atento a este espectro de contestação, vai tentar no seu novo livro,A esquerda que não teme dizer seu nome, criticar esta esquerda, que segundo ele, vendeu seus princípios históricos em troca dos acordos com as classes dominantes.

As primeiras páginas do livro “que pretende falar do inegociável”, porém, rapidamente lançam um banho de água fria no leitor. Safatle irá do início ao fim do seu livro fugir da raiz do problema e sua posição será a do conselheiro: acende de um lado, assopra do outro.

I – É possível a igualdade entre opressor e oprimido?

Para o autor, a esquerda têm de resgatar alguns princípios “inegociáveis”, que segundo ele seriam: o igualitarismo, a soberania popular e o direito de resistência. E completando a seqüência teremos o universalismo e o internacionalismo. Foquemos nos três primeiros:

Para Safatle a esquerda deve resgatar o igualitarismo, pois quando ela se aliou com o capital para governar, deixou de lado esse princípio e ficou fascinada “por ser recebida em casas de escroques na Riviera Francesa” (p.16)

A luta contra a desigualdade para ele, porém,

só pode ser realmente minorada por meio da institucionalização de políticas que encontram no Estado seu agente. Pode-se dizer isso porque, de outra forma, elas nunca terão a escala e a universalidade necessárias para funcionar. (p.23)

O Estado segundo Safatle é “a única instituição que garante o estabelecimento de processos gerais capazes de submeter toda a extensão da sociedade” (p.23).

Mas não é o mesmo Safatle que denuncia frenquentemente o nosso Estado oligárquico, dirigido pelas elites mais retrógradas?

Mas para ele, o Estado é também “resultado de uma rede de normas sociais cuja configuração é sensível à pressão da sociedade organizada”. (p.23)

Daí surge a proposta em resgatar o princípio da soberania popular e do direito de resistência como formas de se realizar esta pressão. Falando sobre as mobilizações populares, como os piquetes operários, ocupações de terra do MST, etc:

...é graças a ações como essas que os direitos são ampliados, que a noção de liberdade ganha novos matizes. Sem elas, com certeza nossa situação de exclusão social seria significativamente pior. (p.48)

A maior prova que o autor lança no decorrer do livro de que o Estado pode ser “uma força capaz de limitar interesses de concentração de riquezas vindos dos setores mais afluentes” e ser agente do igualitarismo, é o Estado de Bem-Estar Social do pós-guerra.

Sem dúvidas, podemos dizer que todas as mudanças e direitos conquistados pela classe trabalhadora dentro do capitalismo, como a jornada de 8 horas, o acesso “gratuito” a educação, saúde, etc. foram garantidos a partir de lutas e enfrentamentos populares, que impuseram mudanças na legislação e separação de parte da renda nacional para financiá-los. Defender ainda a resistência popular frente este Estado brasileiro que ataca brutalmente os movimentos de reivindicação, utilizando a estrutura policial herdeira da ditadura para reprimir e espionar é sem dúvida uma tarefa que o conjunto da esquerda tem de tomar.

Nosso autor, porém, radicaliza um suposto universalismo do Estado e da própria democracia, que apaga o essencial, isto é, que ambos são instrumentos de dominação de classe.

Safatle fala em diversos momentos do seu texto de uma “plasticidade natural” da democracia. Ora, esta suposta “plasticidade”, tem um limite claro e intransponível. Como lembrava Engels em 1891, para aqueles que após a morte de Marx, tentavam revisar sua teoria da luta de classes,

o Estado não é mais do que uma máquina para a opressão de uma classe por outra e de modo nenhum menos na república democrática do que na monarquia [1].

Seu surgimento, esta diretamente ligada a divisão da sociedade em classes antagônicas. O Estado,

... é um produto da sociedade numa certa fase do seu desenvolvimento. É a confissão de que essa sociedade se embaraçou numa insolúvel contradição interna, se dividiu em antagonismos inconciliáveis de que não pode desvencilhar-se. Mas, para que essas classes antagônicas, com interesses econômicos contrários, não se devorassem entre si e não devorassem a sociedade numa luta estéril, sentiu-se a necessidade de uma força que se colocasse aparentemente acima da sociedade, com o fim de atenuar o conflito nos limites da "ordem". Essa força, que sai da sociedade, ficando, porém, por cima dela e dela se afastando cada vez mais, é o Estado...

E completando, dizia:

...o segundo traço característico do Estado é a instituição de um poder público que já não corresponde diretamente à população e se organiza também como força armada. Esse poder público separado é indispensável, porque a organização espontânea da população em armas se tornou impossível desde que a sociedade se dividiu em classes. Esse poder público existe em todos os Estados. Compreende não só homens armados, como também elementos materiais, prisões e instituições coercivas de toda espécie, que a sociedade patriarcal (clã) não conheceu [2].

Este corpo especial, “destacamento de homens armados” que fica por cima da sociedade, não surge para “regular” o conflito das classes, mas surge como instrumento da classe dominante para a exploração da classe oprimida.

O surgimento do Estado e das instituições representativas na Grécia Antiga nos ajuda a entender mais profundamente esta verdade.

A pólis (cidade-Estado) surge quando a velha aristocracia se depara com o surgimento de novas classes de artesãos e comerciantes que começam a tomar cada vez mais importância econômica. A democracia surge como uma forma de acomodação dessas novas classes sobre as regras e a dominação desta antiga classe aristocrata, quando não é mais viável a antiga forma de dominação.

Guardadas todas as diferenças históricas, podemos dizer que a democracia é a forma que a burguesia irá encontrar para acomodar as antigas (aristocracia, camponeses, etc.) e novas classes (proletariado urbano) sob suas regras, sob sua tutela. A democracia, portanto, passa longe de ter um valor universal. Ela é a ditadura escamoteada da classe burguesa sob o proletariado, “instrumento de exploração do trabalho assalariado pelo capital [3].

E quando esta tutela sobre as massas exploradas fica ameaçada, como nos incontáveis processos revolucionários do século XX, a “plasticidade natural” da democracia faz com que ela se transforme rapidamente em ditadura aberta e sangrenta contra o proletariado.

Como escreve Lênin na polêmica com Kaustky em 1918:

Tomai as leis fundamentais dos Estados contemporâneos, tomai a sua administração, tomai a liberdade de reunião ou de imprensa, tomai a “igualdade dos cidadãos perante a lei”, e vereis a cada passo a hipocrisia da democracia burguesa, bem conhecida de qualquer operário honesto e consciente. Não há Estado, nem mesmo o mais democrático, onde não haja escapatórias ou reservas nas constituições que assegurem à burguesia a possibilidade de lançar as tropas contra os operários, declarar o estado de guerra, etc, “em caso de violação da ordem”, de fato em caso de “violação” pela classe explorada da sua situação de escrava e de tentativas de não se comportar como escrava [4].

O Estado de Bem-Estar, por sua vez, só pôde existir circunstancialmente na Europa e nos EUA a partir de uma conjuntura muito específica de crescimento econômico a partir da reconstrução de 1/3 das forças produtivas mundiais destruídas pela Segunda Guerra mundial e pelas rendas de exploração da classe trabalhadora das colônias e semi-colônias na África, América Latina, Ásia pelos grandes monopólios imperialistas. Países estes que foram dominados por ditaduras sangrentas - financiadas pelos distintos imperialismos - durante a década de 60 e 70 para conter as tensões de libertação desses povos dos seus opressores nacionais e internacionais. Soma-se ainda a existência da URSS que fazia com que a burguesia imperialista tivesse que ceder ao movimento operário ao custo de este ficar sobre a influência de Moscou.

Hoje, em meio a maior crise capitalista de 1929, diferente do espaço idealizado por Safatle, o Estado demonstra todo seu caráter de classe com os resgates trilhionários ao capital financeiro internacional e os ataques as condições de vida dos trabalhadores para salvar os grandes capitalistas.

Com os governos da Grécia e Itália escolhidos pelas finanças de Paris, Frankfut e Bruxelas se escancara mais uma vez que longe de ser um instrumento para realização dos “interesses gerais” da sociedade “o Estado moderno é um comitê para gerir os negócios comuns de toda a classe burguesa [5] 5.

II – Democracia para além do Estado de Direito?

Safatle não deixa de reconhecer que as finanças mundiais estão pisando sobre as cabeças de milhões de trabalhadores europeus ao desviar seus impostos para salvar os bancos e colocando os governos dos seus interesses sem o mínimo de participação popular.

Para isso ele invoca novamente a soberania popular para a superação da democracia parlamentar com destino a democracia direta.

Toda sua digressão visa, porém, aperfeiçoar o Estado de Direito, com a busca de uma maior dinâmica de plebiscitos e ...consultas virtuais aos cidadãos.

Seu cavalo de batalha será a pequena ilha da Islândia, que segundo ele, tem algo a nos ensinar: seu presidente chamou um plebiscito para saber se a população iria salvar ou não os bancos no início da crise em 2009.

Esta por 98% decidiu que não e formulou-se ainda uma nova constituição com a colaboração virtual dos cidadãos.

Safatle só se esquece de lembrar o leitor que a Islândia é uma ilha com pouco mais de 300.000 mil habitantes, sendo a 132ª economia do mundo. Isto é, como nosso autor pode acreditar que medidas como essas poderiam realmente acontecer nas maiores potências capitalistas mundiais? Lembrando que quando se tentou fazer o mesmo na Grécia que é a economia mais fraca hoje da Europa continental, Geórgios Papandréu foi tirado de cena em poucas horas...

Sem falar que a própria Islândia que esta fora da zona do euro, com suas influências reduzidíssimas no comércio de capitais mundial, sofreu inúmeras pressões e ameaças de boicote de diversos bancos internacionais, do FMI e dos governos europeus em razão deste plebiscito.

Acredita mesmo Safatle que se algum presidente da França, Inglaterra, Alemanha, EUA entre outras potências, propusessem o mesmo, continuaria no cargo?

Longe de apresentar uma saída “para além do Estado de Direito”, Safatle conclui que

o verdadeiro desafio democrático consiste, desse modo, em institucionalizar tal poder instituinte, criando uma dinâmica plebiscitária de participação popular(p.52).

Muito barulho para muito pouco, não?

III – Reforma ou revolução?

Safatle tangencia a resposta desta questão de todas as maneiras. Primeiro diz que é uma dicotomia falsamente criada. Em seguida, reclama daqueles que só falam de reforma e depois dos que elevam “a revolução à condição de modelo único de acontecimento dotado de verdade” (p. 72).

Mais no meio desse diz que me diz não consegue esconder sua preferência:

Por outro lado, deve-se entender que uma sequência de reformas profundas provoca um salto qualitativo a partir do qual dificilmente se volta para trás. Este era o caminho de uma das mais impressionantes experiências da esquerda no século XX, experiência sobre a qual ainda temos muito o que meditar, a saber, o socialismo democrático de Salvador Allende. (p.76)

Mas a experiência do “socialismo democrático” de Salvador Allende demonstrou exatamente o oposto. Demonstrou que é impossível se chegar ao socialismo por via das reformas e da democracia burguesa.

Como descreve o próprio Safatle no livro, todas as tentativas de mudanças radicais neste processo, foram barradas e atacadas pela burguesia por dentro e por fora do aparato Estatal. Os cordões industriais - talvez uma das formas mais avançadas de auto-organização que a classe operária construiu na América Latina – que surgiram para fazer frente aos lockouts patronais foram instrumentalizados pelo governo na expectativa de isolar os setores mais conservadores dentro do exército e do aparato Estatal.

As organizações que participavam do processo não tiveram uma política de transformar os cordões em organismos superiores para centralizar a luta e defesa do conjunto da classe trabalhadora (se limitando a um organismo de distribuição econômica) e acabaram reféns das mudanças que Allende prometia por dentro do parlamento e da democracia burguesa.

Acabaram, dessa maneira, sendo surpreendidas e não conseguiram organizar nenhum tipo de defesa efetiva contra o golpe dirigido por Pinochet, que afogou em sangue toda a resistência, estabelecendo uma das ditaduras mais sangrentas da história do século XX. Tudo o que a experiência do “socialismo democrático” demonstra é que a revolução não pode se dar pelo acúmulo gradativo de reformas.

A dialética dos processos revolucionários é muito mais complexa do que o processo que faz a água ferver depois de certa quantidade acumulada de calor.

O processo revolucionário é marcado pela luta viva e desesperada entre revolução e contra-revolução e longe de seguir uma linha reta é marcada por fluxos e refluxos. Avanços e retrocessos na consciência das massas exploradas e no nível de coesão das classes dominantes.

Esta visão, de uma transformação evolutiva do capitalismo para o socialismo, impregnou os grandes partidos do movimento operário no final do século XIX, voltou novamente no pós-guerra na Europa e tentou selar bases eternas depois da restauração capitalista na URSS pelas próprias mãos da burocracia stalinista.

Todos estes períodos têm um mesmo traço em comum: são períodos de um capitalismo relativamente “pacífico”, que produziram um retrocesso ideológico profundo que tentou escamotear o principal, isto é, que existe uma contradição irreconciliável entre a burguesia e o proletariado e que esta luta invariavelmente ultrapassa em determinadas etapas a legalidade formal das instituições criadas pela classe dominante e só pode se resolver a partir da força e da violência.

Para Allende que aguardava a maioria no parlamento e para Safatle que aguarda a maioria nos plebiscitos, vale resgatar alguns importantes trechos das fortes e profundas palavras de Lênin contra Kautsky em 1918:

Em tal estado de coisas, supor que numa revolução minimamente profunda e séria a solução do problema depende simplesmente da relação entre a maioria e a minoria, é a maior estupidez, é o mais tolo preconceito de um vulgar liberal, é enganar as massas, esconder-lhes uma verdade histórica manifesta. Esta verdade histórica consiste em que, em qualquer revolução profunda, a regra é que os exploradores, que durante uma série de anos conservam sobre os explorados grandes vantagens de fato, opõem uma resistência prolongada, obstinada e desesperada. Nunca — a não ser na doce fantasia do doce tonto Kautsky — os exploradores se submetem à decisão da maioria dos explorados antes de terem posto à prova a sua superioridade numa desesperada batalha final, numa série de batalhas.

A transição do capitalismo para o comunismo constitui toda uma época histórica. Enquanto ela não terminar os exploradores continuam a manter a esperança da restauração e esta esperança transforma-se em tentativas de restauração. E depois da primeira derrota séria, os exploradores derrubados, que não esperavam o seu derrubamento, não acreditavam nele, não admitiam a ideia dele, lançam-se com energia decuplicada, com uma paixão furiosa, com um ódio cem vezes acrescido na luta pelo regresso do “paraíso” que lhes foi arrebatado, pelas suas famílias que viviam tão docemente e a quem a “vil população” condena à ruína e à miséria (ou ao “simples” trabalho). E atrás dos capitalistas exploradores arrasta-se uma grande massa da pequena burguesia, que, como mostra a experiência histórica de dezenas de anos de todos os países, oscila e vacila, que hoje segue o proletariado e amanhã se assusta com as dificuldades da revolução, cai no pânico à primeira derrota ou semi-derrota dos operários, se enerva, se agita, choraminga, corre de um campo para outro . . .

E em tal estado de coisas, numa época de guerra desesperada, aguda, quando a história coloca na ordem do dia as questões da existência ou não existência de privilégios seculares e milenários, fala-se de maioria e minoria, de democracia pura, de que não é necessária a ditadura, de igualdade entre exploradores e explorados! [6].

Dá para entender depois destas passagens, por que o nosso autor fala em seu livro da “tão rica querela de Lênin contra Kautsky” mas não se dá ao trabalho de se posicionar ou explicar a posição de qualquer uma das partes.

Ela se choca diretamente com seu pensamento... e com seu íntimo:

Hoje, defender uma sequência substantiva de reformas é muito mais
difícil do que defender rupturas radicais de molde revolucionário, pois mais perigosa é uma mudança que está ao alcance de nossas mãos do que a que está fora do alcance de nossa visão. Lutar por reformas sem perder de vista que processos incalculáveis podem acontecer – mais do que um conselho político, isso talvez seja uma forma de vida
. (p.76)

Será que Safatle não percebe que a estratégia que defende é a mãe da adaptação do PT e da esquerda dos dias de hoje? O casamento do PT com Maluf, Sarney, Skaf, etc, é reflexo de uma estratégia que tinha o objetivo de ir ganhando espaços e transformando de maneira gradual o regime burguês.

Os setores majoritários dentro do PT desde sua fundação queriam ir empurrando pouco a pouco o poder dos militares para fora do Estado, acreditando que a pressão de sua base operária da CUT e dos outros movimentos sociais, iria resultar em um espaço cada vez maior dentro do regime burguês e que a partir das eleições municipais, estaduais, nacionais e uma base ampla no congresso poderia implementar seu programa. Só que o destino – isto é, a luta de classes – fez com que PT acabasse mostrando mais uma vez na prática a falha fundamental do reformismo e da estratégia de pressão.

Os Estados e regimes não são como um recipiente que podem ser preenchidos com qualquer conteúdo. Para se tornar hegemônico no Estado burguês o PT teve que se adaptar cada vez mais ao conteúdo que dá vida a esta forma de Estado, isto é, a propriedade privada. A carta ao povo brasileiro de Lula em 2002, nada mais faz do que tentar manifestar a classe dominante que o PT tinha aprendido muita coisa na escola de atuação por dentro do regime nos anos 1980 e 1990, isto é, queria mostrar que estava graduado para gerenciar a propriedade privada nacional e internacional.

Para tanto, tem de se aliar com as forças políticas que foram base da ditadura (Sarney, Maluf, Cia.) e nunca e em nenhuma hipótese, afrontar o instrumento que mantém o domínio daqueles que detém a propriedade privada sobre a imensa maioria da população: o exército e a polícia.

Mas Safatle diz que não quer o retorno da “social-democracia” e do “Estado de Bem-Estar Social”. Segundo ele, em artigo para a revista Cult de junho deste ano:

... falar em esgotamento da social-democracia significa compreender que sua função histórica já foi realizada. Ela já passou. Não se trata de procurar recuperar o Estado do Bem Estar-Social tal como ele foi concebido nos anos 50 e 60, mas compreender suas limitações e propor algo que tenha a radicalidade de evitar seus defeitos, limites e exclusões. Ou seja, pensar (no sentido hegeliano do termo) em uma superação do Estado de Bem-Estar Social [7].

O que seria esta “superação do Estado de Bem-Estar Social” fica no ar, (será talvez o “socialismo democrático de Allende”?) mas a superação ao “esgotamento da social democracia” tem nome e endereço segundo nosso autor:

...o fenômeno a ser notado é a reconstrução dos partidos à esquerda da social-democracia, como o francês Front de Gauche, o grego Syriza e o alemão Die Linke. Todos eles têm duas características básicas: são organizados como frentes e forçam o debate político em direção a uma ação a partir de valores.

E continua,

Essa nova organização de frente permite o acordo de várias sensibilidades de esquerda (trotskistas, comunistas, ecologistas, social-democratas radicais, autonomistas, etc) diante de um projeto de pontos comuns, mas não completamente determinado. Essa indeterminação relativa é uma virtude e não um problema, pois ela implica afirmar que a política não é o domínio das identificações especulares, onde me engajo apenas quando encontro a imagem especular perfeita de minhas crenças [8].

Tais agrupamentos buscam a formação de “partidos amplos” a partir da aglutinação de uma série de correntes sem uma unidade estratégica e uma clara delimitação de classe. Este fenômeno vem se desenvolvendo desde a década passada com a formação do RESPECT na Inglaterra, o NPA na França e o PSOL no Brasil.

Essa “indeterminação relativa” de “pontos comuns”, porém, esta muito longe de ser uma virtude. O RESPECT, formado a partir da fusão do SWP britânico (que se reivindica trotskista) com correntes muçulmanas burguesas no início da guerra do Iraque explodiu pouco tempo depois, gerando uma crise de que a corrente britânica tenta se recompor até hoje.

No NPA a aglutinação da LCR (que também se reivindica trotskista) com grupos ecologistas e abertamente reformistas que saíram do PS, passa por uma importante crise, com setores que nem sequer apoiaram a candidatura do próprio partido nas ultimas eleições.

As profundas divergências que paralisam o NPA se expressam com maior agudez desde o processo de luta contra as reformas da aposentadoria de Sarkozy em outubro de 2010. Neste processso o NPA acabou tendo uma política seguidista a burocracia sindical da CGT que buscou desde o início desviar o profundo processo que estava em curso. Tais políticas, somadas a uma perspectiva de buscar os “novos sujeitos revolucionários” que acaba por deixar de lado a centralidade de se construir um partido orgânico na classe trabalhadora fazem o NPA assistir uma saída sistemática de operários de suas filas.

O caso do Syriza (Coalização da Esquerda Radical), porém, é o mais emblemático, formado por mais de 10 grupos distintos que vão de ecosocialistas a maoístas, passando por autonomistas. Sua principal força política é o Synaspismos, fruto de uma cisão do partido comunista (KKE) nos anos 1980 e que em 1989 e 1990 chegou a fazer parte de governos de coalizão com a Nova Democracia e com o PASOK.

O Syriza obteve uma expressiva votação nas últimas eleições gregas, com sua vitória sendo cogitada até poucos dias antes das eleições. Seu discurso de crítica as medidas impostas pela troika e principalmente pela Alemanha, com ameaças de questionamento a dívida grega, causou impacto nos principais centros financeiros mundiais que montaram um verdadeiro operativo de intervenção nas eleições gregas a favor da vitória da Nova Democracia.

O discurso do Syriza acabou canalizando de maneira distorcida o profundo sofrimento que vem passando a maior parte da população grega, mas longe de poder responder efetivamente os ataques implementados pela troika se mostrou cada vez mais adaptado no decorrer do processo eleitoral, tentando se apresentar como uma alternativa “viável” de administração capitalista da crise grega.

Além de não ter relações orgânicas com setores de trabalhadores o SYRIZA se organiza principalmente através da figura midiática de Alexis Tsipras que propõem não o rompimento com o imperialismo alemão e francês, mas uma “renegociação dos pontos da dívida”, a partir de um “consenso europeu” nos moldes do acordo de Londres de 1953 (que reduziu pela metade as dívidas da Alemanha Ocidental no pós-guerra) e um “plano Marshall de investimentos”.

Isto é, um programa nos marcos do capitalismo e utópico já que espera a “benevolência” dos imperialismos europeus e um contexto muito diferente do início do pós-guerra. O próprio plano Marshall financiado pelos EUA tinha como principal objetivo afastar da Europa destruída o fantasma da revolução socialista. Para a Alemanha e seus bancos, perdoar a dívida grega hoje significaria trazer a crise para dentro da sua economia, que até agora ficou relativamente fora dos efeitos catastróficos da crise graças a imposição das medidas de “equilíbrio-fiscal” ao restante da Europa pelo BCE sob a batuta de Merkel.

Nesta semana o SYRIZA, estandarte dos setores “a esquerda da social-democracia”, escancarou de vez seu programa para administrar o capitalismo grego, com Tsipras vindo ao Brasil para se reunir com o PT e com Lula para “aprender a governar” [9] e costurar um arco de alianças internacionais com vistas as próximas eleições gregas.

Ao espectador atento, deve ser sintomático o fato de que na sua visita ao Brasil neste final de ano, Tsipras tenha passado quase uma semana em reuniões com a cúpula petista e com membros do governo Dilma, enquanto que com os membros do PSOL – seu partido “homônimo” aqui no Brasil – não tenha passado mais que duas tardes.

Se tivesse tido mais tempo, Luciana Genro e Ivan Valente poderiam ter contado como o PSOL está lutando para consolidar passos neste mesmo sentido nos tempos brasileiros.

Poderiam ter contado que mais uma vez seu partido recebeu financiamento da burguesia para as eleições(agora foi Edmilson em Belém) e todas as “virtudes” de se formar um partido “sem todos os princípios claros” aqui no Brasil também, se aliando com o DEM, PSDB, PT, PMDB, PPS, PDT, PCdoB..... (ufa!) nestas últimas eleições municipais...

Tsipras poderia até aprender a mais nova teoria criada pelo senador Randolfo Rodrigues, que para explicar a aliança com os setores burgueses em Macapá, disse que

Se alguém apóia um governo de esquerda é porque se converteu ao nosso programa. Não há luta de classes quando a burguesia apóia as reivindicações do proletariado. Aí a burguesia deixa de ser burguesia [10].

Mas o SYRIZA têm pressa para aprender a gerenciar o capitalismo!

Resta perguntar por que Safatle - que apoiou ativamente as candidaturas do PSOL nestas últimas eleições municipais – fica em silêncio com estas alianças.


Podemos sintetizar a querela com Safatle da seguinte maneira: a contradição fundamental do pensamento do autor é que ele vai criticar a esquerda e sua adaptação aos interesses e valores da burguesia, propondo o resgate de princípios estritamente liberais: o igualitarismo, a soberania popular e o direito de resistência.

Isto é, princípios da burguesia em seu momento de luta contra a aristocracia e quando lutava para moldar o Estado feudal aos seus interesses. Igualdade para combater os privilégios da nobreza. Soberania popular, para a pequena burguesia jacobina arrastar as massas plebéias e camponesas contra o poder da aristocracia. Direito de resistência frente a tirania do monarca.

O proletariado não pode ficar refém dos valores e destes princípios, pois não refletem sua verdadeira tarefa histórica e sua irreconciliável posição perante o Estado capitalista. Este não pode ser “adaptado” aos interesses do proletariado. Ele têm de “ser quebrado”, como Marx e Engels já adiantavam como primeira lição histórica da Comuna de Paris de 1871 que atacou e suprimiu os pilares do Estado capitalista, o exército permanente e a burocracia, substituídos pela democracia direta dos produtores.

Para superar sua adaptação a classe dominante a esquerda deve recuperar não os princípios liberais, mas sim o arsenal teórico-político do marxismo.

Para esta tradição a revolução proletária é impossível sem a destruição violenta da máquina de Estado e a criação simultânea uma nova forma estatal transitória, a ditadura revolucionária do proletariado, baseada na democracia dos produtores - como a Comuna de 1871 e os soviets na Revolução Russa de 1917 – que vise a dissolução das classes e, por conseguinte, a dissolução do próprio Estado.

Muito mais valioso para a esquerda que o liberté, egalité e fraternité, seriam princípios como a independência política da classe trabalhadora perante a burguesia, seus partidos e governos. Princípios que derivam diretamente desta estratégia, que não pode permitir em hipótese alguma que os trabalhadores se iludam de que as transformações efetivas possam ocorrer em aliança com a classe dominante e por meio de seu aparelho de dominação de classe que é o Estado.
Muito mais valioso para os trabalhadores e para a esquerda é o resgate do legado de revolucionários como Leon Trotsky, que nos deixou ferramentas fundamentais para enfrentar os desafios abertos pela crise capitalista.

Como o Programa de Transição, fruto de uma síntese teórica e programática das principais experiências do movimento operário do início do século XX e que superando a velha divisão entre o “programa mínimo” para as reformas e o “programa máximo” para a revolução, assenta importantes bases para que possamos desde hoje atuar nos processos de luta e resistência a nível mundial, buscando criar uma ponte entre o nível atual de consciência dos trabalhadores e a necessidade da revolução socialista com a tomada do poder pelo proletariado.

Nosso autor, que escreve um livro “que pretende falar do inegociável” acaba sendo o representante de novas variantes do reformismo que já deram uma enxurrada de exemplos de que estão dispostos a negociar qualquer princípio por uma “saída viável”, sem rompimentos “unilaterais” em troca de seu “pedacinho de regime”.

Safatle que tenta afastar o leitor das conseqüências terrenas das suas idéias vai até a filosofia para defender a nova esquerda, segundo ele

...Deleuze costumava dizer que o novo não aparece como um clarão. Ele sempre nasce com as máscaras do antigo, pois se mostrasse completamente seu rosto enquanto ainda está se consolidando, seria destruído. A verdadeira astúcia do novo consiste em aparecer sem alarde, isto para que, em um segundo momento, possa enfim expor toda sua potencialidade  [11].

Na nossa visão, estas novas variantes “a esquerda do reformismo” no Brasil e na Europa se parecem mais com o velho que se transverte de novo para não deixar de existir. Sua verdadeira astúcia consiste sim em esconder seu verdadeiro significado, pois este já foi provado e rejeitado pela história.

[1ENGELS, F. Prefácio - Guerra Civil na França.

[2ENGELS, F. A origem da família, da propriedade privada e do Estado.

[3Idem.

[4LÊNIN, V.I. A revolução proletária e o renegado Kautsky

[5MARX, K; ENGELS F. Manifesto do Partido Comunista.

[6LÊNIN, V.I. A revolução proletária e o renegado Kautsky.

[7V. SAFATLE. Ensaio de Orquestra. Revista Cult n. 169. Junho de 2012.

[8Idem.

[10Nota da Carta Capital sobre Randolfe, as alianças e o debate interno do PSOL publicada no blog do próprio Randolfe. “Após vitória em Macapá, PSOL discute alianças e como governar”, ver em HTTP: blogdorandolfe.com.br/

[11V. SAFATLE. Ensaio de Orquestra. Revista Cult n. 169. Junho de 2012.

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