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CINEMA

"A Vida dos Outros": a repressão em tons pastéis

27 Jan 2008 | O longa-metragem, que marca a estréia no cinema do diretor alemão Florian Henckel von Donnersmarck, alcançou projeção internacional, especialmente depois de ganhar o Oscar de melhor filme estrangeiro, além de outros prêmios nacionais e internacionais. O filme se passa em 1984, na Alemanha Oriental e a trama desenvolve-se a partir da personagem Wiesler (Ulrich Mühe), investigador exemplar da polícia política (supostamente secreta) da Alemanha Oriental, a Stasi, encarregado de investigar o dramaturgo Dreyman (Sebastian Koch).   |   comentários

O filme de Donnersmarck parte do olhar do espião da Stasi ao artista investigado e sua namorada, a atriz Christa (Martina Gedeck) . Entretanto, ao longo da trama, ocorrem momentos de variação do foco daquele que espiona, deslocando para cenas protagonizadas pelas duas personagens sob vigília, mas longe dos olhos de seu espião. Ainda assim, o filme coloca principalmente o espectador na ótica do investigador. Wiesler começa como um investigador ávido a encontrar elementos "subversivos" na vida do casal, mas passa rapidamente a voyeur e defensor, progressivamente incondicional, do dramaturgo. A partir desse movimento do investigador explica-se, inclusive, o nome da película: o policial da Stasi não possui vida própria, é solitário e totalmente dedicado ao seu asqueroso ofício, e assim vive a vida do outro, o dramaturgo.

O cenário para a história é Berlim Oriental e a ambientação do filme oscila entre uma construção fria e retratista, típica de séries policiais que podemos ver em canais de televisão mundo afora (inclusive na Alemanha), contrapondo-se com alguns cenários emotivos e nostálgicos. A opção cenográfica do diretor assinala e anuncia suas intenções: a estética é simples, coerente com a trama e não é ousado em momento algum. Desde a luz, cenário, trilha sonora, montagem...tudo é convencional e articulado a objetivos diretos de ambientação. Como qualquer filme americano, busca arrancar do público duas ou três maneiras de emocionar e entreter. Para as cenas relacionadas diretamente a Stasi a ambientação firma-se fria e retratista, quando se trata diretamente da vida do dramaturgo, da atriz ou do círculo de amigos do casal a ambientação é emotiva e nostálgica.

Dreyman, o dramaturgo investigado por Wiesler, é reconhecido pelo então Ministério da Cultura da República Democrática Alemã (RDA) como um artista oficial. Entretanto, após assistir a encenação de uma de suas peças Wiesler não se convence de que Dreyman está totalmente de acordo com a política da burocracia do SED [1] e se oferece para investigá-lo pessoalmente. A sugestão em investigar o dramaturgo casa perfeitamente com os interesses com ministro da cultura, que cobiça a atriz Christa, namorada de Dreyman. Porém, ao longo das investigações, Wiesler começa a se envolver com a vida do dramaturgo e passa a omitir fatos na investigação, tentando inclusive intervir na vida do casal. Neste ponto se tem a impressão de que o diretor aprofundará na relação vitima-carrasco, mas a trama vai se desenvolvendo e a questão é deixada de lado. Como Wiesler vive a vida de Dreyman, entra em crise junto com Dreyman com a vida na RDA desde a perspectiva política a pessoal, mas isso não sai da superfície mais uma vez, como se pode esperar de um thriller. Mesmo o ato de denúncia protagonizado pelo dramaturgo não emociona: escreve um artigo sobre o fato de que os suicídios não serem mais contabilizados na RDA, que é publicado na Spiegel (Semanário burguês alemão, parecido com a revista Veja).

Na época em que lançou o filme, o diretor declarou ter feito um filme "hiperealista" e metafórico e não um registro realista e histórico. Segundo Donnersmarck o filme fala da impossibilidade de se manter aprofundada e abertamente posições políticas no país por muito tempo. Assim, mesmo o investigador da Stasi, convicto do papel santo que a burocracia cumpria no país, não consegue manter suas posições. A intensão em comunicar essa idéia, de que era difícil defender estar convictamente ao lado da burocracia por muito tempo, no limite, o drama até consegue atingir. Entretanto o filme não esboça nada, nem "hiperealista" nem metafórico. A direção das atuações e a trama não estão trabalhadas o suficiente para dar um aspecto de alegorias universais às personagens e o desenvolvimento do filme não constrói metáforas, ao contrário, é predominantemente direto, tanto nos diálogos e cenas quanto na construção da história.

Provavelmente diretor utilizou o rótulo "hiperealista" definindo seu trabalho para defender-se das críticas à falta de verossimilhança do filme no que tange a história da República Democrática Alemã (RDA). Ao opor realismo à "hiperealismo" tenta colocar aqueles que criticam o filme por sua falta de cuidado com a memória do período como defensores do realismo socialista [2]. Mas é claro que se a intenção do diretor foi, de fato, essa espécie de defesa dissimulada a tática pouco funcionou. Embora Ulrich Mühe, ator que interpretou o investigador da Stasi no filme, fosse atuasse nos teatros da extinta RDA e tenha inclusive vivido, na vida real, uma história semelhante a do dramaturgo Dreyman (o ator acusou sua ex- mulher, a atriz Jenny Gröllmann, de colaborar com a Stasi entre 1979 e 1989, o mesmo que a personagem Christa faz na ficção) o filme traz uma trama bastante distinta do que realmente ocorreu nesta relação repressora do SED contra a população do país; marcadamente artistas, intelectuais e militantes opositores ao regime burocrático. Muitos artistas e intelectuais que viveram na RDA consideraram o filme inverossímil, além de um drama de traços hollywoodianos, que pouco consegue transmitir sobre a atmosfera de repressão política e cultural da época. Mas essa questão é colocada pelos "ex-cidadãos" da RDA...

Entretanto, para os alemãos em geral, a construção e execução de um roteiro com este tema, e especialmente sob a ótica do ’carrasco convertido’, parece vir a atender desejos do público e da crítica alemã (atingindo ampla bilheteria na Alemanha e ganhando diversos prêmios no Festival de Berlim), principalmente, e americana como se confirmou na premiação do Oscar e no prêmio dos críticos de Nova York. Ou seja, ao mesmo tempo em que sugere um resgate da atmosfera de repressão da Alemanha Oriental, satisfaz a curiosidade do espectador no tangente as nuances da espionagem política da vida dos outros no país.

Para os estrangeiros que vêem o filme e pouco conhecem sobre a obscura história recente da Alemanha Oriental o aspecto de revelar alguns detalhes da espionagem política contra a população no país, sem dúvidas, impressiona. Mas, apesar de esboçar uma denúncia à repressão, o thriller dramático de Donnersmarck não aprofunda nem no drama psicológico das personagens reprimidas e investigadas nem nos problemas políticos enfrentados pela população sob a dura vigília da Stasi. E ainda, na escolha dos personagens, da ótica do filme e na história que desenvolve, parece feito por encomenda para o governo alemão.

[1SED - Sozialistischen Einheitspartei Deutschlands, em português Partido Unificado Socialista Alemão. O SED era o partido da burocracia da Alemanha Oriental o qual governou o país de 1949 a 1989, ou seja, durante todo o período de existência da República Democrática Alemã.

[2O termo realismo socialista refere-se a uma política estatal de repressão produção artística na União Soviética, a partir da década de 30 quando começou o período de burocratização do Estado Operário. O realismo socialista definiu-se, segundo seus "teóricos", como realista na forma e socialista no conteúdo, o que significou, na prática obras sem nenhuma margem para experimentação formal (figurando meras fotografias da política da burocracia, mesmo que se trata-se de um romance, um poema ou uma peça de teatro) e que defendiam a burocracia e reafirmavam seu status quo no conteúdo. Na RDA a burocracia do SED também tentou impor aos artistas esse tipo de produção.

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