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A Primavera Árabe Prossegue

18 Apr 2011   |   comentários

Os processos que combinados fizeram tremer o solo do Magreb e do Oriente Médio na primavera árabe prosseguem. Nesta fase, encontramos os levantes populares – tingidos de espontaneidade e alta radicalização – num momento difícil: as massas insurgidas contra os efeitos objetivos desastrosos do impacto da crise econômica mundial estão experimentando a fúria das instituições burguesas que regeram o país a sangue e fogo e que foram sempre vassalas do imperialismo.

Apesar das limitações surgidas das atrasadas bases econômicas dos países nas regiões insurretas, o que dificulta a diferenciação social e a projeção da classe operária no seio do “bloco de todo o povo” como classe revolucionária dirigente das lutas pelas demandas democráticas nacionais; a ausência de poderosas ferramentas políticas da classe operária na maioria dos países; o grau excepcional de vigilância e interferência euro-americana na região e a inexistência do ódio anti-imperialista nas manifestações (perspectiva associada à mobilização de “grupos extremistas”), debilidade combinada à hegemonia que as classes médias tiveram em alguns dos processos (como no Egito): apesar disso, os impressionantes levantes de massas prosseguem sem cessar à parte dos ritmos que assumem, e impregnam de incertezas os rumos que esses conflitos tomarão, o que impacienta e faz explodir as contradições também entre as potências.

A violência burguesa desenfreada na Síria

O processo político na Síria se configura como um dos mais dinâmicos nessa fase da primavera árabe, do ponto de vista da extensão nacional do conflito. Desde o início, o governo começou a agitar o fantasma da “violência sectária” contra a oposição, um argumento esgrimido durante as últimas décadas para esmagar qualquer raio de descontentamento da maioria sunita do país, por parte de uma ditadura de minoria alauita [1]. Buscam desacreditar as mobilizações com o argumento de que os levantes são parte de uma conspiração armada de militantes islâmicos sunitas e refugiados palestinos; por sua vez, Washington tem de levantar a voz contra um regime aliado do Irã e que tem graves disputas com Israel (as colinas de Golã), além de abrigar em damasco a direção exilada do Hamas, o que leva tanto Obama quanto Asad a obscurecer o justo levante dos famintos e desempregados sírios. Dezenas de milhares de manifestantes convocados pelos grupos de oposição sírios lançaram-se às ruas na cidade de Deraa, origem dos protestos multitudinários contra o regime de Bashar el-Asad.

Sob a pressão das jornadas de protesto, o presidente sírio firmou dia 21/4 a revogação da lei do estado de emergência, em vigor desde 1963, a eliminação do Alto Tribunal de Segurança do Estado (órgão de poderes irrestritos de repressão à população, capaz de operar prisões sem mandato), e respaldou uma nova lei que garante a realização de protestos pacíficos no país. Mas o Ministério do Interior proclamou que a anunciada supressão das leis excepcionais supunha tal democratização que não há mais justificação para ulteriores protestos de rua, que não seriam tolerados.

Essa “abolição” dos poderes excepcionais do Estado e dos tribunais políticos tem como berço a manobra de recuo para tentar fraturar o levante de massas, e portanto nada tem de sério para os manifestantes, que têm agora de pedir permissão ao Ministério do Interior para organizarem os atos anti-governamentais. É enorme a contradição para uma ditadura como a de Asad ter de conceder essa abolição, condição sobre a qual governou por décadas; assim como a provocação de “conceder” cidadania síria aos curdos do norte [2]. Por isso, ao invés do fim das leis de exceção, há o recrudescimento da repressão. A polícia sanguinária do regime matou 88 pessoas em 17/4 nos atuais epicentros dos protestos.

Há fortes fricções entre os setores rasos do exército e os comandantes ligados ao regime reacionário de Asad. Os soldados que se negam a disparar contra a multidão são freqüentemente executados por seus superiores.

O regime sírio se prepara para afrontar jornadas críticas. Enquanto a revolta popular se estende a quase todo o país, o duplo jogo de El Asad, de conceder com uma mão e reprimir com outra, se esgota. Os comitês de coordenação local já pedem o imediato desmantelamento das forças de segurança. O elemento agravante para a quadro político sírio vem do Iêmen, em que o presidente Ali Abdalá Saleh aceitou, com a conivência dos partidos opositores, o plano imposto pelo reacionário Conselho de Cooperação do Golfo, segundo o qual abandonará o poder em 30 dias e convocará eleições.

As massas sírias precisam se unir para paralisar o poder de Asad, armando as milícias populares de auto-defesa contra a violência do regime, e por meio de uma greve geral política faça cair o governo e constitua um governo operário e popular de transição.

A impaciência popular se incrementa contra a junta militar no Egito

A política e a vida cotidiana egípcias estão em estado de fluxo. A baixíssima participação no referendo constitucional de 19/3 (apenas 23% da população participou) havia sido um termômetro do crescente descontentamento existente, sobretudo entre os jovens, estudantes e trabalhadores. A prova cabal de que não houve nem a mais fugaz espécie de “revolução democrática triunfante” foi a mostra que a Junta Militar ofereceu de até que louca crueldade de vingança a burguesia servil é levada, logo que a classe operária e as massas ousam surgir frente a ela em defesa de seus direitos. Um dos exemplos mais emblemáticos dessa continuidade foi a repressão e as torturas sofridas por mais de 170 pessoas detidas no dia 9/3, durante o processo da praça Tahrir. Entre os detidos, havia 18 mulheres que após as torturas e golpes, foram submetidas a “exames de virgindade”. Além das torturas, os tribunais militares já julgaram mais de 5000 ativistas desde a queda de Mubarak.

À repressão direta se somaram leis que cerceiam o direito de livre expressão, a vigência do estado de emergência, e as causas contra ativistas. Outra lei que dá conta do conteúdo reacionário dessa “transição” é o direito aprovado há alguns dias à proibição de manifestações operárias que afetem o desenvolvimento da economia. Assim, o exército busca o restabelecimento da ordem e garantir a continuidade dos negócios dos capitalistas (incluindo eles mesmos, já que os militares são proprietários de empresas de água mineral, azeite, pesticidas, plantas de tratamento de águas e hotéis).

O processo revolucionário egípcio abriu uma dinâmica profunda na classe operária. Com essas jornadas se inaugurou um processo de reorganização: surgiram sindicatos independentes da central sindical burocrática. Hoje, embora as greves tenham diminuído, se mantêm lutas importantes como a dos trabalhadores das empresas subsidiárias da Autoridade do Canal de Suez (um local estratégico do petróleo), que exigem iguais condições de trabalho e de salários como os operários do Canal. Também há manifestações em vários ministérios e oficinas públicas, e existem lutas nas empresas privadas, em que os trabalhadores exigem a nacionalização e a reincorporação dos operários demitidos por organizarem-se.

As audiências na Universidade do Cairo para expulsar os reitores da era Mubarak; os protestos e greves pela renacionalização das empresas privadas e para que saiam todos os gerentes do antigo regime; são todos uma mostra eficiente de que as consignas que motorizaram as jornadas revolucionárias seguem vigentes. E mais do que nunca, está começando a ser patrimônio da vanguarda da juventude e da classe trabalhadora que o Conselho Supremo da Forças Armadas não será a garantia de que se realizem essas demandas. Apesar da debilidade de não haver um partido de classe independente, naufraga a miragem de uma transição pactuada com o exército que pudesse acalmar as massas.

Porem, a ausência de um grande partido operário revolucionário (mais ainda por existir no Egito a classe operária mais forte da região) se traduziu numa debilidade para as forças que são o motor do processo revolucionário. Torna-se cada vez mais urgente que uma aliança entre a classe operária, a juventude e o povo pobre forme seus próprios organismos de auto-organização com um programa e uma estratégia revolucionária independente do regime e daqueles que se apresentem como opositores dentro dos limites da “transição ordenada”. O processo segue aberto.

O pântano do conflito líbio: o foco não deve estar entre o imperialismo ou Kadafi

Há uma relação de compromisso indireto que dá confiança ao imperialismo para jogar do expediente de alongar o massacre líbio para tratar de enraizar na opinião internacional que a intervenção não deve alimentar sentimentos anti-imperialistas (e anti-norte-americanos) na região, já que se reduz unicamente a uma “intervenção humanitária”, ao mesmo tempo em que prepara as bases materiais para evitar um abalo estrutural em seus interesses econômicos no Magreb e no Oriente Médio.

A Itália permitirá que seus aviões bombardeiem objetivos militares na Líbia, justamente quando as tropas de Kadafi se retiraram de Misrata, para garantir seus interesses. O imperialismo norte-americano é mais cauteloso, e espera que os oficiais da CIA que operam na Líbia (para trabalhar na arrecadação de inteligência no território) dêem certeza de que aqueles que se postulam para suceder Kadafi são confiáveis para seus interesses, antes de dar qualquer tipo de assistência (o que mantém ativa a disjuntiva entre o armamento/treinamento ou não dos rebeldes pela aliança atlântica).

Seu álibi principal é a direção do Conselho Nacional de Transição líbio. O ideal para essa fração burguesa opositora a Kadafi não seria de forma alguma ter que se ancorar na direção nas massas insurretas, como o que ocorre na Líbia atual, para substituir aquele; o melhor cenário para o CNT seria o de um mero golpe palaciano, que o tornasse advogado da submissão líbia.

Os EUA enviaram aviões não-tripulados para atacar com “maior precisão” as forças de Kadafi, os mesmos que fazem parte das operações genocidas na fronteira do Afeganistão com o Paquistão. Essa manobra, que já não é “o primeiro vôo da águia”, busca evitar o ódio anti-imperialista pelos efeitos colaterais de mortes civis. Além de ser uma manobra de Obama e dos democratas de contrabalançarem o movimento do representante dos republicanos, John McCain, de visitar a Líbia e “animar todos os países, inclusive os Estados Unidos, a reconhecer o CNT como o porta-voz legítimo do povo líbio” (El Pais, 23/4) [3]. Enquanto isso, a França aumenta o número de suas operações aéreas, tratando de incendiar uma crise no interior da OTAN, ao acusar os demais de não estarem realmente se “empenhando” em derrubar Kadafi, e usando isso como propaganda eleitoral do Sarkozy.

Os bombardeios da OTAN em solo "rebelde" mostram que antes de destruir Kadafi, o imperialismo tem a preocupação de destruir os centros de gravidade do processo revolucionário.

Uma grande debilidade do processo líbio é que o grosso da classe operária está composta em grande medida por imigrantes africanos que foram perseguidos pela direção “rebelde” com a acusação de serem mercenários de Kadafi, (dos 6,5 milhões de habitantes, há ao redor de 2 milhões de imigrantes que provêm dos países mais pobres da África) [4]. Isso exponencia os efeitos da falta de liberdade para a organização política e sindical na Líbia. Outra debilidade, presente no processo árabe de conjunto, é que apesar de haver-se enfrentado com regimes ditatoriais pró-imperialistas, não levantou entre suas bandeiras a luta contra o imperialismo e contra sua força de ocupação, Israel, colocando em xeque a instalação imperial na região, como lembra Perry Anderson [5].

O processo líbio está em pleno curso e a intervenção da OTAN abriu uma nova etapa em seu seio; suas diretrizes se encaminham com mais determinação para uma pacificação forçada dos insurgentes e uma saída controlada sob a tutela do imperialismo, que quer a saída de seu velho aliado porque este já não representa uma garantia de estabilidade de seus interesses, além de ser um obstáculo a qualquer plano de transição. Sua superioridade militar frente aos rebeldes não implica que possa impor-se facilmente numa guerra civil que, se se prolonga, complicará ainda mais o mapa geopolítico e da luta de classes em uma região convulsionada pela primavera árabe.

É preciso superar a debilidade que mostrou a ausência de um programa anti-imperialista – uma debilidade importante do processo de conjunto – e lutar contra a intervenção do imperialismo na Líbia, assim como enfrentar seus agentes na região.

[1As forças de segurança e as milícias especiais (a shabiha, pistoleiros a soldo do regime de el-Asad) já se habituaram a utilizar os funerais dos caídos como outras tantas tumbas para os manifestantes. No período que vai de 1979 e 1982, levantes em várias cidades, entre as quais Hama e Tadmor, levaram ao massacre, até hoje impune, de 40 mil pessoas pelo governo de Hafez al Asad, pai de Bashar. A Síria tem 22,5 milhões de habitantes, e acredita-se que o regime disponha de 400 a 500 mil informantes, segundo Waloid Saffour, presidente do Comitê Sírio de Direitos Humanos (SHRC). Há pelo menos 10 mil presos políticos na Síria.

[2Por volta de 300 mil sírios da etnia curda estabelecidos no norte da Síria não tinham direito à cidadania, até a atual assinatura do decreto. Seu crime: fazerem parte dos curdos que, há 50 anos, não puderam comprovar com documentos que viviam no país desde 1946, ano em que a Síria tornou-se independente da França.

[3A França – cujo presidente também visitará a Líbia em maio – também aumentou o número de incursões aéreas na Líbia, passando de 30 para 41 as operações francesas.

[4Isso explica, em parte, porque apesar de ser um dos setores mais oprimidos, não só não participou do levante como tratou de fugir desesperadamente do país, muitas vezes morrendo na tentativa.

[5Perry Anderson, “On the concatenation in the Arab world”, New Left Review, http://www.newleftreview.org/?page=article&view=2883

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